segunda-feira, outubro 01, 2007

Errata a uma Entrevista Sobre Pasolini


O leitor pode confiar no jornalismo cultural dos grandes jornais diários brasileiros? O editor do Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, Luiz Zanin Oricchio, obrigou-me recentemente a responder negativamente à questão. Nada mais fácil de detectar que um erro alheio colocado em nossa boca pela imprensa; se o editor, que tem o poder e o dever de corrigir o erro não o faz, somos levados a pensar que tudo o que ali se publica está cheio de disparates. Como leitor, perdemos a confiança. Concedi por telefone uma entrevista sobre Pasolini, objeto de meu último livro, Todos os corpos de Pasolini, ao jornalista Ubiratan Brasil, do Caderno 2. As repostas de sempre para as perguntas de sempre. O repórter talvez nem tenha tido tempo de ler todo o livro. É normal.

Mas, a 23 de setembro de 2007, a matéria saiu, para minha surpresa, na capa do Caderno Cultura de domingo (e com chamada na própria capa do jornal), mobilizando não apenas o Ubiratan Brasil, mas ainda dois outros jornalistas: Antonio Gonçalves Filho, o melhor jornalista cultural em atividade atualmente, e que escrevera a orelha de meu livro; e o próprio editor do Caderno, Luiz Zanin Oricchio. O artigo de Gonçalves era ótimo e o de Zanin, mais fraco; os dois falavam apenas de Pasolini, sem mencionar o livro. Ilustrando o artigo de capa, uma inteligente caricatura de Pasolini como O pensador, de Rodin, algo frágil, e em vermelho, mas nenhuma imagem da capa do livro que motivara as matérias frias.

Eu deveria exultar por uma tão excelente divulgação. É notório que os cadernos culturais da grande imprensa privilegiam umas poucas editoras: em São Paulo, notadamente a Cosacnaify, a Companhia das Letras. Raramente são destacadas as publicações de editoras menores, que lutam para sobreviver, como a Perspectiva: as coletâneas O Expressionismo, organizada por J. Guinsburg; e Pós-modernismo, por Guinsburg e Ana Mae Barbosa; o estudo biográfico Yukio Mishima, de Darci Kusano; a edição crítica de Büchner: Na Pena e na Cena, por Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela, por exemplo, são alguns dos livros de referência que a editora publicou e não mereceram qualquer resenha na grande imprensa. Nas Bienais do Livro, somos surpreendidos, regularmente, com centenas de edições da mais alta qualidade, produzidas em todo o Brasil, e de que jamais lemos qualquer menção nas mídias impressas... Mesmo as recentes revistas especializadas em livros só resenham os sucessos editoriais previamente estabelecidos. Temos, assim, sempre mais do mesmo...

Desta vez fui curiosamente privilegiado. E, ao ler a enorme matéria sobre Todos os corpos de Pasolini, fiquei feliz e infeliz, como logo diagnosticou meu editor, já acostumado a tais transtornos. Era uma página visualmente bonita; uma matéria para se recortar e guardar, não fossem as incongruência e bobagens que “eu” dizia. Gravada pelo repórter, a entrevista continha erros evidentes de transcrição que acabaram sendo colocados na minha boca. O pior deles: “eu” digo que “Pasolini passou a juventude em Israel”. Na entrevista, eu dissera: “Pasolini passou a juventude sob o fascismo”. A palavra fascismo nem soa parecido com a palavra Israel! De onde tiraram isso?

Havia outros erros: “eu” digo que Pasolini preferia trabalhar com atores profissionais, quando eu dissera o que todos sabiam, que ele trabalhava de preferência com atores não profissionais. Enlouquecido, “eu” ainda afirmo: “Como todo italiano que viveu aquele período (anos 40) Pasolini teve um grande vigor sexual”. Como isso soa absurdo! O que eu disse foi: “Como todo italiano que viveu a juventude naquele período (anos 40) Pasolini teve sob o fascismo seu período de maior vigor sexual”. Assim eu tentara explicar, resumidamente, a nostalgia do cineasta, em Salò, por aquele período, que não era, como alguns críticos insinuaram, nostalgia pelo fascismo e sim nostalgia pelo vigor sexual que ele experimentara sob o fascismo; essa coincidência tornou sua sexualidade mais complexa e explicava sua preferência pelo décor dos anos do fascismo ao realizar naquele filme sua maior crítica ao consumismo contemporâneo.

Enviei uma errata ao jornal. Karla Dunder, em licença-maternidade, encaminhou meu e-mail ao editor Luiz Zanin Oricchio e a Ubiratan Brasil. A resposta de Ubiratan foi honesta e profissional. Ele considerou justo meu incômodo com a transcrição da nossa conversa. Ele gravara a entrevista e pedira para outra pessoa tirar a fita, por conta de problemas inesperados na redação. Não tendo podido ele mesmo realizar esse trabalho, que sempre fazia, e confiante na fidelidade da transcrição, ele pedira que outra pessoa fechasse a matéria em seu lugar. Infelizmente, reconhecia agora várias incorreções. Lamentava que isso tivesse acontecido e encarregava-se de providenciar uma errata. Tentaria corrigir o máximo possível dos erros. Esperava, deste modo, amenizar as falhas. Pedia que eu aceitasse suas sinceras desculpas. E, como a matéria saíra no Cultura, que circula aos domingos, faria isso na próxima edição do caderno, no domingo, dia 30, segundo o regulamento da casa. E se despedia novamente desculpando-se pelos tropeços.

Ao assumir francamente os erros, sem nenhuma vaidade e de peito aperto, Ubiratan Brasil cresceu muito aos meus olhos. Também Gonçalves, ao ler a matéria, lamentou os erros na entrevista. Não a lera antes de ser publicada, pois estava fora e não participara da edição do Caderno de domingo. Mas tinha certeza de que seria feita uma retificação. Atribuía os erros à pressa e ao acúmulo de trabalho que haviam prejudicado a edição de Ubiratan, um profissional sério que, nas últimas semanas, acumulara as funções de editor, substituindo Dib Carneiro, em viagem profissional, e ainda assumira a coluna “Persona”, que estava sem o titular.

Já Zanin reagiu mal, e suponho que ferido pela minha imprudente afirmação de que o artigo dele era mais fraco que o de Gonçalves. Mas isso também era verdade, como uma blogueira constatou por si mesma, num artigo, de resto, ideologicamente equivocado (Visão profética ou observação apurada da realidade?). Levando para o lado pessoal, e colocando-se acima de qualquer erro, Zanin reagiu com suprema ironia e sarcasmo, afirmando que o pessoal do Estado produzia um jornalismo cultural do mais alto nível; que achava uma pena que eles não estivessem talvez à altura das minhas expectativas ou da excelência da minha obra; prometia tentar melhorar para ver se conseguia chegar, um dia talvez, ao meu padrão de qualidade. E despedia-se sem mais.

Defendi-me desses pequenos dardos envenenados: “Também procuro a sempre difícil excelência no meu ofício, mas raramente a encontro. Quanto às minhas altas expectativas, elas jamais serão alcançadas por qualquer mídia capitalista, por mais que se esforce. E padrão de qualidade eu deixo para a Rede Globo. Já os leitores de qualquer mídia merecem ter acesso a informações corretas. Por isso sempre procuro corrigir os erros, sejam eles publicados no Estado ou num jornal de bairro. Envio-lhe, em anexo, a entrevista com correções para eventual errata. Grato e abraço”.

Zanin retrucou, sempre com sarcasmo e ironia, que expectativas podiam ser atendidas ou não; que as dele envolviam não apenas a excelência do trabalho como a urbanidade no trato; que eu não precisaria agradecer-lhe já que ele tinha prazer em tratar com pessoas educadas e generosas; e que analisaria, enfim, se minha demanda de correção era de fato procedente. Sugeria, em poucas linhas, que eu era mal educado, errado, grosseiro, enquanto ele, generoso, excelente, polido, considerava, contra todas as evidências, não haver erro algum na transcrição da entrevista, exibindo-me seu poder de decisão, o seu ameaçador polegar, que já pendia para baixo.

De fato, a errata não veio. Se o ouvido é falho e as transcrições, além de trabalhosas, traidoras, os jornalistas que insistem em fazer entrevistas por telefone na era do e-mail estão décadas atrasados: acabam colocando erros de suas transcrições na boca dos entrevistados, que nada mais podem fazer depois que esses saem publicados, sobretudo se ainda cometem a imprudência de ferir a vaidade de um editor que se sente acima do direito dos leitores ao acesso a informações corretas. Multiplicados por milhares nas rotativas, os erros ainda são reproduzidos ao infinito pela Internet, como no Bresser-Pereira Website.

Para amenizar esse estrago, postamos abaixo uma nova versão da entrevista, revista e corrigida. E sugerimos a leitura de outra entrevista, feita por e-mail, para o sítio da 2001 Vídeo, mais fiel ao meu pensamento sobre Pasolini. É triste constatar, mas os sites comerciais, com seus arquivos de notícias e catálogos de livros e DVDs, sem qualquer pretensão ou arrogância, são hoje mais confiáveis, honestos e informativos que o jornalismo cultural dos gigantes da mídia impressa.

PROFECIAS DE PASOLINI
Todos os Corpos de Pasolini, de Luiz Nazario, traz uma análise da extensa obra do cineasta que previu os desastres do mundo contemporâneo

Ubiratan Brasil

Em junho, mais de 700 intelectuais europeus assinaram abaixo-assinado proposto pelo prefeito de Roma, Walter Veltroni, pedindo a reabertura do processo sobre o assassinato ainda não totalmente esclarecido do escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini, ocorrido em novembro de 1975. Passados quase 32 anos, o crime acontecido em circunstâncias ainda nebulosas (então único assassino, Giuseppe Pelosi confessou depois que não agira sozinho) movimenta dramaticamente a memória de um dos grandes pensadores do século passado.

“Numa época em que a violência de massa se tornou a realidade cotidiana de todos os países do mundo, com criminalidade e neofascismo galopantes; em que a corrupção do neoliberalismo ficou evidente para qualquer um; e em que o consumismo assumiu, sem disfarces, a destruição dos valores humanos e a dilapidação das reservas naturais do planeta, a obra de Pasolini demonstra sua incandescente atualidade: ainda nos anos de 1970, ele alertou o mundo, ao preço da própria vida, para o inumano que hoje domina toda a economia, toda a política”, escreve o historiador Luiz Nazario, um dos mais profundos conhecedores da obra pasoliniana no Brasil. Ele é autor de Todos os Corpos de Pasolini, lançado agora pela Perspectiva (378 páginas, R$ 68) e que oferece uma esclarecedora análise sobre uma obra de inesgotável valor artístico: mais de 16 mil páginas de poemas, romances, contos, crônicas, ensaios, peças, roteiros e cartas, ao lado de 26 filmes, e traduções, desenhos, pinturas, músicas, entrevistas e performances.

Crítico radical da sociedade de seu tempo, Pasolini (1922-1975) foi um dos primeiros a enxergar a virada irreversível do mundo. Nazario observa que o cineasta, autor de filmes seminais como Teorema, O Evangelho Segundo Mateus e Gaviões e Passarinhos, experimentou em seu corpo a mutação antropológica da humanidade pela homologação cultural. De fato, entre suas várias facetas, a do diagnosticador dos tempos que viriam é a mais conhecida.

Ciente de que o mundo é movido por forças contrastantes, Pasolini pregava contra o conformismo estéril. Ele acreditava também que a arte exige conhecimento prévio e técnico, não sendo ato de pura vontade nem dom natural. Diante de um material tão rico, Nazario, autor da primeira biografia do cineasta no Brasil (Orfeu na Sociedade Industrial, publicado em 1982 pela Brasiliense), preferiu dividir seu livro em temas, a fim de dissecar todos os aspectos da obra pasoliniana. Há até um capítulo especialmente sobre a recepção que os filmes de Pasolini tiveram no Brasil e outro com uma entrevista inédita em livro com Gianni Scalia, crítico literário que foi grande amigo de Pasolini. Sobre o trabalho, Nazario conversou, por telefone, com o Estado.

Já é possível avaliar o legado da obra de Pasolini?

Acho que ainda é difícil, porque as obras completas foram publicadas há muito pouco tempo. Assim, temos aspectos específicos sobre a poesia, cinema e literatura, mas um livro que englobe realmente tudo ainda não existe.

O que você diria sobre o cinema?

A obra cinematográfica é marcante e isso partindo de uma pessoa que não tinha formação de cinema - ele era escritor que decidiu fazer cinema por volta dos 40 anos, reinventando o cinema pela linguagem que ele próprio ia criando. Isso também teve um impacto muito grande na teoria que desenvolveu sobre o cinema, que é muito complexa.

Até que ponto o neo-realismo influenciou a obra de Pasolini?

No início, a influência era grande, especialmente nos primeiros dois filmes, Desajuste Social e Mamma Roma. Ali, a influência está na escolha dos atores amadores, uma característica do neo-realismo, além da composição dos cenários reais, marcados pela pobreza.

Ele falava que fazia cinema para uma elite, desconsiderando o sentido tradicional da palavra.

Sim, uma elite intelectual, ou seja, pessoas que ele considerava ainda não terem sido contaminadas pelo consumismo, que pensavam por si próprias, sem serem teleguiadas pelas mídias, pela televisão.

E essa elite compreendia seu cinema?

É difícil responder. Acho que não. Alguns poucos entenderam pelo fato de ele ser muito criticado pelos intelectuais - Pasolini era literalmente bombardeado por nomes como Umberto Eco. Havia, pois, uma mínima compreensão do que ele pretendia dizer.

Isso comprova que Pasolini estava à frente do seu tempo?

Exatamente, ele só foi reconhecido realmente muito tempo depois de sua morte. Para se ter uma idéia: só colocaram uma placa identificando a casa onde ele nasceu, em Bolonha, há uns cinco anos. Pasolini já era reconhecido mundialmente, mas na cidade onde ele nasceu havia ainda essa rejeição.

É possível afirmar que especialmente nos últimos anos de sua cinematografia, Pasolini foi um exemplo de cineasta político?

Se você se refere a Salò, acredito que sim. Trata-se de um filme muito complexo para se analisar. Existe ali um aspecto interessante sobre a época retratada no filme, porque ele passou a juventude sob o fascismo e tem alguns aspectos que abordo no livro sobre a descoberta da sexualidade. Como todo italiano que viveu aquele período (anos 1940), foi durante o fascismo que Pasolini viveu seus anos de maior vigor sexual. Mas, ao mesmo tempo, era a época opressora do fascismo, então as duas coisas estão muito misturadas no filme. Embora fosse de esquerda, no filme Pasolini demonstra certa nostalgia, não do fascismo, pois era um antifascista, mas daquele período em que viveu sua “melhor juventude”.

É possível identificar uma clara divisão em sua obra cinematográfica, com uma primeira fase marcada por Accatone, Mamma Roma e depois outra, mais pessoal, com Teorema e Pocilga?

Acredito que toda obra dele é muito pessoal - só o fato de ele colocar a própria mãe como a mãe de Cristo e amigos como apóstolos, intelectuais trabalhando como figurantes em O Evangelho Segundo Mateus, já indica que é um filme muito pessoal. Ali, Pasolini se posicionou como um Cristo da sociedade contemporânea, ou seja, destinado a ser linchado.

Ao seguir por caminhos novos, Pasolini procurava negar o que já tinha feito anteriormente?

Cada fase da sua obra corresponde a uma mutação antropológica; ele assume posições cada vez mais radicais diante das transformações da sociedade italiana. Pasolini era extremamente perceptível às mudanças sociais e sua obra reflete isso. É, por exemplo, o que acontece no início dos anos 1970, quando roda a Trilogia da Vida, em que mostra os primeiros nus frontais masculinos do cinema comercial: logo depois ele reage à explosão da pornografia a partir de filmes como Garganta Profunda, que arrecadou milhões, fazendo com que esse erotismo pornográfico passasse a dominar as telas do mundo. Temendo ser confundido com essa onda, Pasolini abjura a Trilogia da vida e anuncia que vai fazer um filme anti-sexo, que é o Salò. O que não considero certo é o pensamento de que esse filme é seu testamento, o que não é verdade.

Seguindo essa linha de raciocínio, como você classificaria Édipo Rei e Medéia em sua obra?

Esses pertencem à chamada fase mítica, que começa com o Cristo do Evangelho e da qual fazem parte Medéia e Édipo Rei, embora o Cristo esteja ligado à mitologia cristã. Quando teve uma grave crise de úlcera, durante o restabelecimento Pasolini começou a ler Platão e ficou entusiasmado a ponto de ler muitos livros sobre mitologia. Com isso, teve a idéia de adaptar os textos gregos, mas sempre com referências contemporâneas - Medéia, por exemplo, trata da questão do Terceiro Mundo, muito em voga na época.

A falta de experiência no cinema sempre foi compensada por uma sólida cultura adquirida?

Exatamente. E também pelo relacionamento que mantinha com artistas consagrados - em Medéia, por exemplo, ele escalou Maria Callas, que nunca havia feito cinema e nunca mais faria depois. Na verdade, ela não foi uma escolha pessoal; um produtor sugeriu, e ele inicialmente até rejeitou, pois preferia atores não-profissionais. Mas quando se conheceram em Paris, Pasolini apaixonou-se por Callas, e a convenceu a aceitar o papel.

Como explicar seu cinema tão intelectualizado?

Na verdade, ele vivia uma vida dupla: de dia, com os maiores intelectuais e, à noite, com os marginais. O genial é que Pasolini conseguia unir esses dois mundos que jamais se uniriam. Fazer, por exemplo, Totò, que era um ator aristocrático, contracenar com Ninetto Davoli, que era uma espécie de marginal. Aliás, a primeira vez em que Totò recebeu Davoli em sua casa, mandou desinfetar o sofá. Parece que só Pasolini conseguia unir Orson Welles com prostitutos que trabalhavam como figurantes em A ricota. Enfim, ele conseguia que monstros sagrados do cinema e marginais convivessem no mesmo universo.

Como era, aliás, essa relação com os atores?

A maioria guardou experiências positivas com Pasolini, que era muito delicado, principalmente com os marginais, os pobres, aqueles que nunca tinham feito cinema. Pasolini era paciente, explicava como funcionava o cinema, o que tinham de fazer. Já com os profissionais, não tinha uma relação muito boa, ele sempre falava mal da interpretação de Anna Magnani em Mamma Roma, e parece que os dois brigaram muito no set.

Já a sua relação com a televisão foi tímida.

Sim, ele sempre detestou a televisão, embora tivesse realizado documentários que passaram na telinha. Não acredito que tenha planejado fazer filmes especialmente para a televisão.

O que você diria sobre a fase corsária de Pasolini, já nos anos 1970?

A partir de Teorema, que é o grande filme do Pasolini, pois capta o espírito do tempo, vem seu período mais efervescente - para mim, um dos melhores períodos também da crítica de Pasolini, de polêmica em jornais sobre a atualidade italiana, contra o consumismo.

Sobre as discussões a respeito do assassinato, você acredita que se chegará a um veredicto definitivo?

Depois de tanto tempo, será impossível encontrar traços ou provas concretas. Tudo foi apagado. Ficará sempre o mistério, embora agora pareça mais claro que Pelosi não tenha matado Pasolini sozinho. Como ele é muito louco, problemático, também não se pode confiar no que fala.

Pasolini ficou como um crítico radical da sociedade?

Sim, eu o colocaria ao nível de um Sartre, um Marcuse, uma Sontag, entre os grandes pensadores contemporâneos.

Luiz Nazario

terça-feira, setembro 25, 2007

O futuro do passado animado



Recentemente exibido no festival de Ottawa, o curta animado da Disney How To Hook Up Your Home Theater, dirigido por Kevin Deters e Stevie Wermers-Skelton (a primeira mulher a dirigir uma animação da Disney, como bem lembrou um comentarista do blog Cartoon Brew) tenta – e, segundo a crítica, consegue – alcançar a meta de parecer uma animação do Pateta de 50 anos atrás, com o mesmo humor nonsense e brilhante estilização, só que ambientada na atualidade, utilizando um eixo temático e a munição de gags do repertório contemporâneo. Para reciclar-se, a Disney busca no passado fontes mais seguras e fortes, ao mesmo tempo em que aposta no estúdio Pixar para garantir que o calor dessas fontes seja devidamente revitalizado.

Via Cartoon Brew.

Alcebiades Diniz Miguel

quinta-feira, agosto 30, 2007

Novos formatos para animação


A explosão criativa – rapidamente revertida em audiência e consumo frenético de DVDs e outros materiais promocionais – das séries de TV nos últimos anos criou novos espaços e formatos para a produção audiovisual. Agora, esses espaços, anteriormente ocupados por produções caseiras em sítios como o YouTube começam a ser preenchidos por interessantes propostas de grandes produtoras. Esse é o caso da série de animação Afterworld, realizada pela produtora Eletric Farm com o apoio de pesos pesados da indústria audiovisual, como a Sony (que já adquiriu os direitos da série para transmissões por televisão e outros dispositivos, como celulares, além de planejar um game baseado na série para o ano que vem) e a Sci-Fi Channel, que exibirá a série com exclusividade na Austrália. A série também será exibida no MySpace, misto de sítio de relacionamentos e frame para divulgação de textos, imagens, sons, filmes, etc. na Internet.

A trama é pós-apocalíptica, com traços derivados de séries do gênero Science-Fiction clássicas como Além da Imaginação (Twilight Zone): um personagem acorda, um belo dia, para descobrir que toda a humanidade desapareceu e que ele, aparentemente, é o único sobrevivente. Pelo que é possível ver do trailer, a animação emprega técnicas convencionais de 3D (não muito distante daquela empregada em jogos), com belas paisagens geradas por computador, mas com artificialismo evidente na movimentação mecânica e na textura "plástica" da pele dos personagen. Contudo, esses novos caminhos, se aproveitados com tramas instigantes (como ocorre em muitas séries de televisão) podem encenar a expansão do mercado de animações, o que facilitaria até mesmo a recuperação de boas animações do passado adaptados aos novos meios.

Links:

- Site da série Afterworld.
- Comentário sobre essa série de animação no Cartoon Brew.
- Matéria completa (com o trailer) publicada na LA Times (para ter acesso, é necessitário ter cadastro no site, o que pode ser feito de graça).

Alcebiades Diniz Miguel

quarta-feira, julho 18, 2007

"Stalker" torna-se realidade na Rússia


O filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovski, apresenta uma espécie de "zona fantasma" no interior da Rússia, devastada por um obscuro desastre cujos destroços e contaminação ainda permaneciam ativos. A região era isolada por tropas militares e arames farpados, tornando-a inacessível (a não ser para os "stalkers", guias que conhecem as armadilhas dessa wasteland). A fantasia científico-existencial de Tarkovski era uma alegoria completa da situação humana dentro do regime totalitário soviético; contudo, após matérias reveladoras recentemente publicadas, pode hoje ser lida como um presságio dos destroços da corrida militar soviética continuamente trazidos à superfície nas últimas décadas como tragédias: bases e cidades abandonadas, reatores obsoletos destruídos contaminando toda a região, armas atômicas e tecnologia militar negociadas por preços baixos, etc.

Mas talvez o maior exemplo de como a realidade russa pós-comunista seguiu a apocalíptica ficção de Tarkovski seja a ilha de Vozrozhdeniye, ou Vozrozhdeniya, próxima ao mar de Aral – ele mesmo atingido por uma tragédia ecológica imensa, diminuindo a cada ano e prester a desaparecer – batizada de "o maior complexo de teste para armas biológicas do mundo". A base de testes, reduzida a destroços descritos por jornalistas que visitaram o local, mostra um mundo assustador preenchido apenas por períodicos médicos ocidentais, livros de Marx e pelas correntes usadas para prender as cobaias empregadas nas pesquisas. O cenário torna-se ainda mais assustador quando vemos que invasores e contrabandistas – atualizações dos "stalkers" – visitam continuamente o local desde 1996, roubando tudo que podem, de fiações a pedaços de metal e material eventualmente contaminado. A perspectiva futura dessa incômoda herança da Guerra Fria é bastante sombria: conforme a devastação do mar de Aral prossegue incontrolável, a ilha vai se integrando ao continente – agora já se trata de uma península – o que facilitará ainda mais o contato de populações próximas com a ilha, fortemente castigada por ventos, e sua "carga", ainda em grande parte não avaliada. Já foram noticiados casos de
estranhas epidemias e contaminação de cientistas.

- "The Island of Forgotten Diseases" de Geoff Manaugh para o blog BLDGBLOG.
- "Anthrax Island" de Christopher Pala para o The New York Times.
- "Anthrax 'time bomb' ticking in Aral Sea, researchers say" de Don Knapp para a CNN.
- Stalker foi lançado no Brasil, podendo ser comprado aqui.

Alcebiades Diniz Miguel

Lançada edição especial com obra completa de Winsor McCay


O pioneiro da animação da HQ e de obras visualmente imaginativas, o norte-americano Winsor McCay, ganhou uma edição incrivelmente completa: o livro Dream of the Rarebit Fiend. Trata-se de uma volumosa edição: mais de 464 páginas, cada página medindo 30 x 43 cm. O livro, que pesa 4,5 quilos, inclui toda a produção de McCay, até uma crítica de seu vaudeville ou um obituário que saiu quando da morte do ilustrador. A pesquisa histórica e crítica conta com um ensaio do pesquisador John Canemaker sobre a vida e a obra de McCay, além de análises comparativas demonstrando a influência do desenhista em importantes obras de Disney ou no filme King Kong. A edição ainda acompanha um DVD/CD-ROM com material exclusivo para leitura me meio digital. Uma edição histórica para os que se interessam pelos primordios do cinema de animação e das HQs.

Preço: US$ 114,00 (sem custos adicionais de envio).

- Site para compra de Dream of the Rarebit Fiend.

Via Cartoon Brew.

Alcebiades Diniz Miguel

segunda-feira, julho 16, 2007

Especial Ray Harryhausen


Esta semana, no excelente blog Monster Brain, inaugurada uma mostra especial com trabalhos do grande animador e criador de criaturas Ray Harryhausen. Algumas das primeiras imagens podem ser vistas logo acima.

Alcebiades Diniz Miguel

segunda-feira, julho 02, 2007

Preciosidades do Popeye em DVD


Um delicioso – e caro – lançamento da Warner Home Video acontece no final de julho: o primeiro volume da série especial Popeye the Sailor: 1933-1938. Trata-se de uma edição especial com várias animações do famoso marinheiro restauradas, na qual a lindíssima fotografia technicolor dessa imortal criação dos irmãos Fleischer volta a brilhar com plena magnitude. Mas o atrativo não são "apenas" as animações restauradas, mas também a quantidade impressionante de extras – incluindo documentários e análises de animadores contemporâneos – ao longo dos quatro DVDs que compõem o lançamento.

Infelizmente, é pouco provável que essa série da Warner seja lançada no Brasil. A coleção Disney Treasures, igualmente caprichada, saiu mutilada (apenas 3 títulos) e foi abandonada. Por outro lado, mesmo séries televisivas de sucesso, como Animaniacs ou Pinky and the Brain foram lançadas por aqui em edições deprimentes, quando comparadas às suntuosas edições americanas. Apenas produtos identificados ao modismo dos revivals e nostalgias da década de 1980, como a sofrível série He-Man mereceram certo destaque na qualidade quando lançados em DVD por aqui. Isso indica claramente que os apreciadores, conhecedores, colecionadores e admiradores da arte da animação em nosso país só conseguem adquirir produtos do nível de Popeye the Sailor através do caro e pouco prático método da importação. De qualquer forma, trata-se de um exemplo de edição que poderia servir de exemplo para distribuidoras nacionais, que poderiam investir nesse nicho com mais ímpeto e boa vontade.

Via Cartoon Brew.

Alcebiades Diniz Miguel

Lume Filmes aposta nos independentes

A distribuição de DVDs de arte tem alcançado uma significativa inserção no mercado brasileiro. Após grandes lançamentos apresentados pelas distribuidoras Continental, Aurora, Magnus Opus, Versátil e Imagem Filmes, um novo selo: a Lume Filmes (com sede em São Luís-MA), que aparece com a proposta de títulos independentes ainda não lançados aqui. Se a proposta é interessante, resta averiguar as qualidades técnicas dos DVDs que estão por sair: legendagem, codificação de imagem e áudio, variedade dos extras, pesquisa por trás dos títulos, etc.

Até o momento, a Lume, além de incentivar a produção de curtas-metragens nacionais, possui os direitos de distribuição de 27 filmes em DVD. Neste segundo semestre, pretende lançar algumas obras de cineastas renomados como Werner Herzog, David Lynch, Emir Kusturica, Wong Kar-wai, Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi, Otto Preminger e Francis Ford Coppola. Dentre os títulos, destaque para Eraserhead (idem, EUA, 1977), de David Lynch; Stroszek (idem, Alemanha, 1977), de Werner Herzog; e Felizes Juntos (Happy Together, Hong Kong/Argentina, 1997), de Wong Kar-wai.


O debut de Lynch está entre “os filmes proibidos da meia-noite”. É uma produção ousada para sua época, sendo conhecida apenas por cinéfilos e exibida em circuitos fechados. Estranho e belo, este underground pós-moderno, fotografado em P/B, é como um pesadelo experimental que dá início à “teoria da monstruosidade” aperfeiçoada por Lynch em filmes posteriores como O Homem Elefante (The Elephant Man, EUA, 1980). O ideal seria se a Lume disponibilizasse nos extras os curtas-metragens de Lynch e o documentário norte-americano Pretty as a Picture: The Art of David Lynch (1997), dirigido por Toby Keeler. Mas não podemos esperar tanto...

Stroszek é o filme-irmão de O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle, Alemanha, 1974), também de Herzog. Versa sobre a viagem que Bruno Stroszek (espécie de Kaspar Hauser na idade adulta), um músico de rua alcoólatra, e Eva, uma prostituta, fazem para o estado norte-americano de Wisconsin, na esperança de uma vida melhor. Escrito em quatro dias, rodado em Berlim e em duas cidades de Wisconsin, Stroszek mostra-se tão moderno quanto O Homem Urso (Grizzly Man, EUA, 2005).

Felizes Juntos, do chinês Kar-wai, levou o prêmio de direção em Cannes, em 1997, e narra o drama afetivo vivido por dois homossexuais emaranhados entre a solidão e o apego. O título ironiza os fracassos dos dois rapazes: da imigração ilegal à prostituição, do desejo interrompido à traição. A fotografia de Christopher Doyle, em cores e em preto-e-branco, dá o tom agridoce deste romance. Hoje, Kar-wai é conhecido pelo estilo peculiar de filmes como Amor à flor da pele (In The Mood For Love, China, 2000) e 2046: os segredos do amor (2046, China/Hong Kong/França/Alemanha, 2004). O cineasta possui uma série de curtas-metragens que também poderiam figurar como extras no DVD.

A proposta da Lume é também trazer para o mercado títulos do cinema indie, representado aqui por Todd Solondz, Neil LaBute e Jim Jarmusch. O primeiro DVD a sair, em julho, é Felicidade (Happiness, EUA, 1998), de Solondz. Trata-se de um painel sobre os relacionamentos neuróticos vividos por loosers de Nova Jersey balizados pela falsa promessa de felicidade. Apesar do ritmo novelesco e do final deprimente, o filme ganhou diversos prêmios nos festivais de cinema independente, cativou a crítica no Festival de Cannes, e ainda conquistou o prêmio do Júri na 22ª Mostra Internacional de Filmes de São Paulo. Desde então, o cineasta tornou-se reconhecido pelo anterior Bem-vindo à casa de bonecas (Welcome to the Dollhouse, EUA, 1995) – que também será lançado pela distribuidora - e pelos posteriores Histórias Proibidas (Storytelling, EUA, 2000) e Palíndromes (idem, EUA, 2004).


Neil LaBute é mestre em abordar de modo frio e cruel a psicologia de seus personagens. Dele, a Lume lançará Na Companhia de Homens (In the Company fo Men, EUA/Canadá, 1997), comédia densa sobre o cinismo que permeia os relacionamentos amorosos na pós-modernidade. A trama gira em torno do plano perverso de dois amigos que, abandonados pelas namoradas, decidem vingar-se das mulheres. Recentemente, um texto de LaBute aportou nos palcos brasileiros: a peça Baque, série de três monólogos, sob a direção de Monique Gardenberg.

De Jarmusch, sairá o DVD Down By Law (idem, EUA, 1986), exibido no Brasil com o ridículo título de Daunbailó. Com elenco irreverente, de Tom Waits a Roberto Benigni, o filme parte do gênero prision movie para retratar de modo cômico e cínico como dois loosers que dividem a mesma cela foram injustamente presos. O cineasta é referência obrigatória no cinema independente atual.

Como poucas distribuidoras que prezam a memória do cinema, a Lume também investirá nos clássicos da cinematografia, especialmente a européia e a oriental. Entre os DVDs previstos estão Filhos de Hiroshima (Gembaku no ko, Japão, 1952), de Kaneto Shindô; Madre Joana dos Anjos (Matka Joanna od Aniolow, Polônia, 1961), de Jerzy Kawalerowicz; Mãe e Filha (Banshun, Japão, 1949), de Yazujiro Ozu; O Cardeal (The Cardinal, EUA, 1963), de Otto Preminger. Há ainda o clássico nacional udigrudi A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, obra que “inaugurou” o cinema marginal ao lado dos filmes da Belair de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla.

Esperemos que os produtos lançados pela Lume estejam à altura de sua proposta e de seu catálogo; e que a nova empresa consiga corresponder às exigências dos cinéfilos e dos estudiosos de cinema, que até hoje foram satisfeitas inteiramente apenas pela Versátil, deixando os demais selos independentes muito a desejar na qualidade de seus DVDs.

Segundo a distribuidora, a ordem de lançamentos é a seguinte:

Junho
Felicidade (Todd Solondz, 1998)
Reconstrução de um Amor (Christoffer Boe, 2003)

Julho
Felizes Juntos (Wong Kar-wai, 1997)
Na Companhia de Homens (Neil LaBute, 1997)

Setembro
Exótica (Atom Egoyan, 1994)
Luna Papa (Bakhtyar Khudojnazarov, 1999)
Filhos de Hiroshima (Kaneto Shindô, 1952, Lume Clássicos)
Madre Joana dos Anjos (Jerzy Kawalerowicz, 1961, Lume Clássicos)

Outubro
Down by Law (Jim Jarmusch, 1986)
Gothic (Ken Russell, 1986)

Novembro
Underground (Emir Kusturica, 1995)
O Sucesso a Qualquer Preço (James Foley, 1992)
Mãe e Filha (Yazujiro Ozu, 1949, Lume Clássicos)
O Cardeal (Otto Preminger, 1963, Lume Clássicos)

Dezembro
Eraserhead (David Lynch, 1977)
Stroszek (Werner Herzog, 1977)

Outros lançamentos previstos: Reconstrução de um Amor, de Christoffer Boe; Bem Vindo a Casa de bonecas, de Todd Solondz; Bom Dia França, de Manuel Portier; Os Imorais, de Stephen Frears; Os Amantes da Ponte Neuf, de Leos Carax; Euphoria, de Ivan Vyrypayev; Reprise, de Joaquim Trier; Offscrean, de Christoffer Boe.

José Rodrigo Gerace

sábado, maio 26, 2007

Orwell, CIA e longa de animação britânico


As atribulações políticas envolvendo a produção de filmes é tema recorrente na produção acadêmica pelo mundo. O último livro lançado sobre esse tema é Orwell Subverted: The CIA and the Filming of Animal Farm, de Daniel J. Leab. Trata-se de uma análise, como o título indica, da intervenção ideológica da CIA durante a criação do primeiro longa de animação de entretenimento britânico, Animal Farm (1954), dirigido por Joy Batchelor e John Halas. O livro traz informações interessantes, retiradas de fontes novas como os arquivos Orwell e documentos da CIA advindos do Freedom of Information Act além de entrevistas com os diretores.

A questão sobre a intervenção da CIA situa-se no fato de que a esposa de Orwell, Sonia, vendeu os direitos de sua fábula anti-stalinista transformada Animal Farm para a CIA. O livro gira em torno das questões sobre manipulação ideológica sobre esse material. De fato, na animação, optou-se por uma série de mudanças decisivas – como a oposição entre humanos e porcos que inexiste no livro – mas também é verdade que a CIA escolheu uma obra que, como as de Arthur Koestler, foi escrita por um ex-militante de esquerda denunciando justamente os desmandos totalitários da esquerda.

Via Cartoon Brew.

Alcebiades Diniz

quinta-feira, maio 24, 2007

Raro filme hippie lançado em DVD

No dia 31 de maio de 2007 será lançado em DVD numa sessão única do Cine Clube Terra Brasilis, às 18h30, na Cinemateca do MAM, do Rio de Janeiro, Geração bendita: É isso aí, bicho! (1971), de Carlos Bini, produzido por Carlos Doady, e nunca exibido na sua versão original integral. Considerado “o primeiro filme brasileiro genuinamente hippie”, foi realizado por uma comunidade alternativa nos arredores de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, criada em fins dos anos de 1960, por brasileiros e estrangeiros unidos pelo mesmo ideal de “sociedade alternativa”. O acampamento durou apenas 3 anos, mas teve a boa idéia de produzir Geração bendita: É isso aí, bicho! – um manifesto em defesa de seu estilo de vida. Nunca, porém, pôde exibi-lo na íntegra – até hoje.

Durantes as filmagens, vários membros da equipe foram presos e tiveram seus cabelos raspados pelas autoridades. Depois de concluído com dificuldade, o filme foi proibido pela censura em 1971, que exigiu uma série de cortes que somavam mais de 40 minutos. Isso obrigou a equipe a refilmar seqüências inteiras para não inviabilizar a produção. Em 1973, o filme-mutante foi aprovado, mas não sem a imposição de novos cortes. Assim transformado pela censura em frankenstein de si mesmo, Geração bendita: É isso aí, bicho! chegou a ser lançado, mas apenas para ser, pouco depois, proibido e apreendido, permanecendo inédito desde então.

Em 2002, através da Cinemateca do MAM, os originais de Geração bendita: É isso aí, bicho! foram encontrados e transferidos para DVD. Raro documento de uma época e de uma de suas principais subculturas, assinado por integrantes da mesma, e não por observadores – críticos ou simpatizantes –, o filme possui ainda uma trilha sonora original composta pelo então desconhecido grupo Spectrum, mas cujos discos tornaram-se itens preciosos de colecionadores de raridades psicodélicas.

Esta sessão muito especial, em que se poderá apreciar a ressurreição de um filme alternativo cruelmente retalhado e enterrado vivo pela censura da ditadura militar, será acompanhada da projeção do documentário de curta-metragem Mutantes (1970), de Antonio Carlos Fontoura, com imagens da melhor banda de rock brasileira de todos os tempos, formada por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Após a exibição, haverá um bate-papo com o produtor e o diretor de Geração Bendita - É isso aí bicho!, seguido da distribuição de brindes e da venda de DVDS do filme.

Sessão Terra Brasilis: Exibição dos filmes seguida de bate-papo com Carlos Doady e Carlos Bini.
Dia: 31 de maio de 2007.
Horário: 18h30.
Local: Cinemateca do MAM-RJ - Av. Infante D. Henrique, 85 - Praia do Flamengo – RJ

Luiz Nazario

Nasce a World Cinema Foundation

Escrevi em As sombras móveis, em 1999: “[…] O cinema mudo vive sua redescoberta, iniciada com as comemorações do centenário, que impulsionou a política mundial de restauração de películas, apoiada pela Unesco, seja para mostras e festivais de cinema, seja para comercialização de vídeos, LDs e DVDs. Com as novas tecnologias e a globalização do mercado, desaparecem as fronteiras entre o cultural e o comercial, e surge, pela primeira vez na História, uma oportunidade real de salvação e difusão da memória visual da humanidade. E assim, parafraseando Abel Gance, todos os clássicos, todos os mitos do cinema, e mesmo todas as cinematografias esperam sua ressurreição luminosa, e os tesouros das cinematecas acumulam-se às portas do mercado para ganhar uma nova vida através da tecnologia digital. O tempo da imagem voltou.”

Quase dez anos depois, Leon Cakoff escreveu: “Pelo terceiro ano consecutivo, impulsionado pelo mercado de DVDs, clássicos do cinema têm sido restaurados para ganhar sessões especiais em Cannes” (Jornal da Mostra, nº 492, 30ª Mostra, 15 mai. 2007). Nesta edição do festival foi anunciado a 22 de maio o lançamento da World Cinema Foundation (WCF), uma associação de cineastas, sem fins lucrativos, criada a partir de uma idéia de Martin Scorsese, com o objetivo de apoiar financeiramente a preservação, a restauração e a difusão de filmes de países de todo o mundo, em particular do cinema da África, da América Latina, da Ásia e da Europa central.

Integram a iniciativa o cineasta brasileiro Walter Salles, o chinês Wong Kar-Wai, o malinês Souleymanne Cisse, os mexicanos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu, o britânico Stephen Frears, o mauritano Abderrahmane Sissako. Como observou Scorsese, é necessário atuar com a maior rapidez e eficácia para que a memória cinematográfica de cada país não seja perdida: “90% dos filmes rodados antes de 1950 nos Estados Unidos já não existem. As coisas mudaram, mas é impossível recuperar o que está perdido. Falta tenacidade dos cineastas, isso é o que tento despertar aqui”. Cada cineasta deveria trabalhar em seu país para recuperar seu patrimônio nacional e as grandes cinematecas e os festivais do mundo deveriam “adotar” filmes, buscando os fundos necessários para sua restauração e distribuição internacional. A fundação prevê a formação de uma rede formada pelas cinematecas de todo o mundo para apresentar os filmes restaurados antes de sua divulgação em DVD (Scorsese, Walter Salles e Wong Kar-Wai lançam fundação. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 mai. 2007, Ilustrada).

Foram exibidos em Cannes os três primeiros títulos cuja restauração foi apoiada pela associação: Transes (Marrocos, 1981), de Ahmed El Maanouni, restaurado pela Cineteca di Bologna, e apresentado por Martin Scorsese; Limite (Brasil, 1931), de Mário Peixoto restaurado pela Cinemateca Brasileira, VideoFilmes, Arquivos Mario Peixoto, com a participação da Arte France, e apresentado por Walter Salles; A floresta dos enforcados Padurea Spinzuratilor, Romênia, 1964), de Liviu Ciulei, restaurado pelo Arquivo Nacional do Filme da Romênia, e apresentado por Cristi Puiu.

O 60º Festival de Cannes celebra ainda quatro efemérides com filmes cujas cópias foram recentemente restauradas para relançamento em DVD: dois cinqüentenários de clássicos – o de Canal (Kanal, Polônia, 1957), de Andrzej Wajda, reapresentado pelo próprio diretor, honrado à época com o Prêmio Especial do Júri de Cannes; e o de Doze homens e uma sentença (Twelve Angry Men, EUA, 1957), de Sidney Lumet, com uma homenagem a Henry Fonda por Jane Fonda; e dois centenários de atores: o de John Wayne, com a exibição de Rio Bravo (idem, EUA, 1959), de Howard Hawks (cópia restaurada pela Warner Bros.); e Hondo (idem, EUA, 1953), rodado em 3D por John Farrow (cópia restaurada pela Batjac Productions); e o de Laurence Olivier, com uma mostra de suas adaptações de Shakespeare: Henrique V (Henry V, Inglaterra, 1944), Hamlet (idem, Inglaterra, 1948) e Ricardo III (Richard III, Inglaterra, 1955) – em cópias restauradas pela Granada International – precedida pelo curta Words for Battle (Inglaterra, 1941), de Humphrey Jennings, narrado pelo ator (cópia restaurada pelo British Film Institute).

Além destas mostras, será apresentado um verdadeiro pot-pourri de filmes em cópias restauradas: As aventuras do Príncipe Ahmed (Die Abenteuer des Prinzen Achmed, Alemanha, 1926), de Lotte Reiniger (restauração: Deustches Filmmuseum Frankfurt am Main); La Bandera (idem, França, 1935), de Julien Duvivier (restauração: CNC - Archives Françaises du Film e SND); Donne-moi tes yeux (França, 1943), de Sacha Guitry (restauração: Cinémathèque Française e Studio Canal); Yoyo (França, 1965), de Pierre Etaix (restauração: Fondation Groupama Gan pour le Cinéma); O vampiro da noite (Dracula, Inglaterra, 1958), de Terence Fisher (restauração: British Film Institute e Swashbuckler Films); Bound by Chastity / L’arche de chasteté (Coréia do Sul, 1962), de Shin Sang-Ok (restauração: Korean Film Archives); Por que Israel (Pourquoi Israel, França, 1973), de Claude Lanzmann (restauração: Why Not Productions); Mikey & Nicky (EUA, 1976), de Elaine May (nova cópia: Carlotta Films); Suspiria (idem, Itália, 1977), de Dario Argento (restauração: Luciano Tovoli e Wild Side Films); Assim, sob a égide da Federação Internacional dos Arquivos do Filme, a salvaguarda do patrimônio cinematográfico torna-se, cada vez mais, o objeto de atenções particulares em numerosos países do mundo. Já o Brasil, cujo Estado tradicionalmente despreza a educação e a cultura, mal desperta para o problema do desaparecimento lento, gradual e seguro de seu patrimônio cinematográfico.

Links:
- Festival de Cannes online.

Luiz Nazario

sábado, maio 19, 2007

A ficção científica torna-se realidade

Um novo programa da NASA, batizado Constellation, lançou um trailer em CGI de suas atividades. Trailer mesmo, com trilha sonora de suspense, frases de impacto publicitário e caprichada animação em CGI de uma planejada viagem de retorno (e ocupação) da Lua. Alguns bloggers norte-americanos perceberam a semelhança entre o trailer da NASA e produções de ficção científica como Battlestar Galactica, Firefly ou Transformers, com a curiosa inversão de que, neste caso, os invasores são os terráqueos. É sabido que narrativas de ficção científica de imenso sucesso, como X-Files (Arquivo X) nos anos 1990, são muitas vezes aproveitadas ideologicamente pela NASA para que alguns de seus programas de orçamentos estratosféricos sejam aprovados pelo mimetismo entre realidade e ficção científica. Mas esse spot publicitário aponta para a possibilidade de a própria NASA produzir seus filmes e propaganda diretamente.



- Trailer Moon Return (em Quicktime, com qualidade bem superior).
- Site do Constellation Program para construção de espaçonaves. Há toda uma sessão de vídeos interessantes nessa página.

Via Collision Detection.

Alcebiades Diniz

domingo, maio 13, 2007

Imagens radioativas


O Japão sempre foi um celeiro para imagens apocalípticas: basta ver qualquer um dos filmes de Inoshiro Honda, como Godzilla (Gojira, 1954) para observarmos de perto esse fenômeno, bastante compreensível tendo em vista o fato do Japão ter sido o primeiro – e até o momento, único – país a conhecer a destruição provocada por armas atômicas. As marcas traumáticas da aniquilação das cidades de Hiroshima e Nagasaki imprimiram profundas, indeléveis marcas no imaginário daquele país.

É dentro desse contexto que podemos colocar as imagens do fotógrafo japonês Hisaharu Motoda, especialmente na série de apocalípticas litografias batizada Neo-Ruins. Nas imagens de Motoda, as paisagens conhecidas de Tóquio dissolvem-se em camadas acinzentadas e ocres, perdendo toda a identidade que mantinham. Também não se trata de uma laudatória "arquitetura das ruínas", como aquela proposta pelo arquiteto nazista Albert Speer. As ruínas de Motoda são vazias e a sensação que temos ao contemplar essas massas informes – até os ceús são cinzentos e mortos – é de distanciamento, como se estivéssemos diante de fotogramas perdidos entre o registro real de uma guerra e o retrato virtual de um apocalipse encenado no cinema. O clima é pós-apocalíptico, pois as ruínas são peças fantasmas de catástrofes futuras, como premonições do destino das inchadas metrópoles ameaçadas pelo terrorismo global. A pesada granulação da técnica litográfica aplicada por Motoda garante esse estranho aspecto de passado que ainda não ocorreu, de futuro projetado na tela do passado.

- Uma pequena nota sobre os trabalhos de Motoda saiu no blog da revista Wired.
- Uma nota com várias imagens impressionantes apareceu no blog Pink Tentacle.
- O site oficial de Hisaharu Motoda.

Via BLDGBLOG.

Alcebiades Diniz Miguel

segunda-feira, maio 07, 2007

Expansão da narrativa

Novas tecnologias como iPod, bem como a expansão muito pronunciada do mercado dos quadrinhos – que chegaram não apenas às grandes livrarias, deixando seu gueto situado nas bancas de jornal, mas também ao campo dos prêmios literários importantes – alargaram as dimensões da narrativa. Fenômeno já identificado por pesquisadores como nosso colaborador Luiz Nazario, esse inchaço das dimensões do campo narrativo e sua expansão ao universo real como diversão interativa, colaborativa, pode resultar numa espécie de achatamento do rico universo imaginário disparado por todas as narrativas, transformado em jogo de regras mais ou menos fixas e resultados estéticos decepcionantes (nada que o cinema, por exemplo, não possa produzir melhor).

Assim, surge o mix de HQ, animação, fotonovela, série de TV e jogo interativo The Many Worlds of Jonas Moore, que contará a história de uma espécie de super-soldado rebelde em um mundo normalizado por jogos eletrônicos virtuais e controlado por poderosas corporações globais. A sinopse, embora decepcionante e derivativa, não deixa de ser profética a respeito da propria natureza do empreendimento.

Links:

- Site de The Many Worlds of Jonas Moore e uma informativa resenha.

Alcebiades Diniz

quarta-feira, maio 02, 2007

Possibilidades orgânicas da modelagem 3D





Um problema comum em muitas animações que utilizam modelagem 3D – tanto as pioneiras quanto algumas das mais recentes – é a tentativa de mimetizar o universo físico sem muita estilização, como se os objetos criados no universo virtual dos softwares ganhasse automaticamente consistência por semelhança imediata, semelhança esta que enganaria os olhos do espectador. Assim, a modelagem esteve em boa parte dos casos atrelada ao aspecto de simulação – que, é bem verdade, está na origem dessa forma específica de visualidade. Contudo, seguindo o caminho da estilização que aproveitasse o mundo específico da realidade concreta simulada em 3D, alguns animadores estão indo bem longe no aproveitamento de uma faceta mais orgânica desse tipo animação. Os exemplos abaixo não primam pelo acabamento complexo no campo das texturas, mas nas complexas mudanças e transformações possibilitadas pelo manejo de um material muito mais flexível que qualquer outro até hoje empregado no universo da animação.

O primeiro vídeo foi criado pelo coletivo de criadores francês The Holograms, que criaram todo um universo mutante a partir do simples template de um caminhão. O segundo, um anúncio animado para a vodka Smirnoff – criação de Edouard Salier e da agência JWT New York –, explora as possibilidades de mudança em objetos mais complexos, que se transformam em outros e se multiplicam ao sabor da trama.

Links:

- Coletivo The Holograms.
- Edouard Salier.

Via Llámame Lola.

quinta-feira, abril 12, 2007

Galeria Online de David Lynch

O diretor de cinema David Lynch – cujo filme mais recente, Inland Empire, estreou nos EUA em 2006 mas ainda não tem previsão de estréia no Brasil – é conhecido pela criação de universos instáveis e perturbadores, possuidores de um estranho tempo reversível e povoado de estranhas criaturas monstruosas no corpo, na alma ou em ambos. Portanto, não é de se estranhar que muitas de suas pinturas acompanhem o tom de seus filmes: sombrias, quase monocromáticas. É isso que vemos na série de fotogravuras disponibilizada online pela Tandem Press; são imagens cruas, nas quais formas imprevistas surgem a todo momento.


Link:
- Galeria online de David Lynch pela Tandem Press.

Alcebiades Diniz Miguel

quarta-feira, março 14, 2007

Os blogs e a distribuição de filmes


Com a expansão de mercado gerada pelo crescimento exponencial de empresas de vendas de filmes, músicas, games e demais produtos multimídia online – a começar pela iTunes Store, número um no setor e parte do "ecossistema" de produtos mediáticos da Apple capitaneados pelo iPod – novas idéias e iniciativas surgem, muitas delas bem distantes da busca pelos mercados convencionais. O excelente blog CartoonBrew lançou, nesse sentido, um serviço de vendas de animações online batizado Cartoon Brew Films. A idéia é disponibilizar aos leitores do blog animações de todo mundo – de clássicos ausentes de coletâneas a experimentações premiadas em festivais e criativos filmes de estudantes – em formato passível de reprodução, com a qualidade necessária, em PCs, iPods e DVDs por um preço bastante atraente (no momento, US$ 2,00 por curta de animação). A seleção ainda é muito pequena, mas a proposta é promissora, servindo como norte para iniciativas semelhantes em outros setores da criação cinematográfica e também para criadores e festivais independentes pelo mundo, que poderiam divulgar e comercializar material de forma rápida, ampla e eficaz.

- http://cartoonbrewfilms.com/

Alcebiades Diniz Miguel

domingo, março 11, 2007

Rancor


A Silver Screen Collection lançou mais um clássico do cinema noir: Rancor (Crossfire, EUA, 1947), de Edward Dmytrik, o primeiro filme a abordar de maneira ficcional, logo após o Holocausto, o fenômeno do anti-semitismo. Infelizmente, o lançamento foi realizado sem cuidado, excluindo os extras que acompanham a edição americana: o excelente documentário de dez minutos Crossfire: Hate is Like a Loaded Gun, que explica como foi difícil realizar Rancor, e como o diretor quase teve sua carreira arruinada pela “caça às bruxas” no final dos anos 1940 – tanto ele quanto o produtor do filme, Adrian Scott, dois dos “Dez de Hollywood”, foram presos por desrespeito ao Congresso ao recusarem responder às questões da Comissão de Investigação sobre comunistas atuantes na indústria do cinema, sendo que Dmytryk, depois de alguns meses de prisão, decidiu colaborar, delatando os comunistas que conhecia; os comentários dos historiadores especialistas em filme noir Alain Silver e James Ursini; e trechos de uma entrevista em áudio de Dmytryk.

Além disso, como observou o sítio da 2001 Vídeo, a sinopse no rótulo do DVD Rancor da Silver Screen Collection é “totalmente incompreensível”. De fato, lê-se o seguinte na contracapa: Este é um filme “noir” incomum, pois é um dos primeiros a lidar com o tema do anti-semitismo. Detetive de Washington cansado (Robert Young) tem que adquirir ao fundo de um assassinato aparentemente motivo-necessitado, com o principal suspeito um soldado de boozy que só pode recordar vagamente os eventos da noite. A história realmente cava seus saltos de sapatos em muitos assuntos pós-guerras, como os soldados precisam de um lugar para pôr toda sua violência uma vez a guerra acabou e os outros problemas de reajustar a vida de civil. Robert Mitchum estrela como um amigo do soldado de acusado que ajuda o detetive a resolver o caso. Edward Dmytryk já tinha se estabelecido como um diretor de noir bom com Assassinato, minha doçura, fez alguns anos mais cedo. Aqui ele leva o sombrio, mundo de meia-noite de pessoas desesperadas e mergulhos indigentes e astutamente voltas isto em um veículo para a exploração de fanatismo. O resultado é um quietantemente atordoante, baixo-chave clássico. Jovem é especialmente bom como o detive e obtém ampla ajuda de Mitchum e Robert Ryan nisto bem escrito, drama atmosférico.

Essa sinopse aloprada, provavelmente traduzida do original por meio de algum programa automático de tradução, paradoxalmente reflete algo do improvisado da trama, já que o próprio filme é uma estranha tradução do romance The Brick Foxhole, do escritor e cineasta Richard Brooks. No romance original, o preconceito enfocado não é o anti-semitismo, e sim a homofobia: um homossexual convidava um soldado bêbado para passar a noite em sua casa; o soldado era seguido por dois colegas à distância, que acabavam invadindo o apartamento para participar da “festa”; no final da orgia, o homossexual era assassinado. Essa trama típica relacionada aos crimes de homofobia, pesada demais para a Hollywood dos anos 1940, foi “adaptada” para o tema do anti-semitismo, e produziu, em Rancor, situações deslocadas.

No filme, que se passa em Washington, a vítima é o intelectual judeu chamado Joseph Samuels (Sam Levene) que, certa noite, ouve sua namorada, dona de um bar, pedir-lhe que converse com o jovem soldado Arthur Mitchell (George Cooper), que ela percebe estar a deprimir-se no balcão com os colegas de quartel - Floyd Bowers (Steve Brodie), Bill Williams (Richard Benedict) e o falante insuportável Montgomery (Robert Ryan); depois, o casal decide levar o doce e sensível soldado Mitchell para jantar, separando-o dos colegas; como a mulher devia trocar de roupa, Mitchell fica a sós com Samuel; pouco depois, o apartamento é invadido pelo enciumado Montgomery e seu cumpincha Bowers, que querem participar da “festa” que imaginam estar acontecendo ali. Durante uma discussão, Montgomery revela-se um anti-semita psicopata, que acaba espancando Samuel até a morte.

Ficamos sabendo depois que Mitchell, sobre quem recai a suspeita do assassinato, já havia deixado o apartamento no momento do crime, tendo passado a noite com a femme fatale Ginny Tremaine (Gloria Grahame), que lhe lembraria sua esposa. Mas a prostituta, que empresta a chave de seu apartamento para que ele vá para lá antes dela, chega tarde ao “encontro romântico de sua vida”: Mitchell cai no sono e é despertado por um velho mentiroso compulsivo (Paul Kelly) que se diz marido, ex-marido ou amante de Ginny, movendo-se à vontade no apartamento. O estranho casal poderia ajudar a inocentar Mitchell, mas a prostituta hesita em prestar depoimento, e por fim, a confirmação do velho “marido” em nada ajuda. Esses dois personagens apenas preenchem a cota de derrotados que um filme noir deve ostentar.

Além do “assassinato sem motivo”, ou motivado pela paixão anti-semita, o outro tema do filme é o da desintegração de soldados que retornam da guerra e não conseguem readaptar-se à vida civil: imbuídos de seu heroísmo nos campos de batalha, desprezam os empregos comuns que consideram incompatíveis com o status glorioso que julgam ter conquistado, assim como os civis “covardes”, que enriqueceram enquanto eles se sacrificavam nos campos de batalha: acabam por se entregar ao vício, à vagabundagem, ao crime e à violência gratuita.

Quanto à adaptação por deslocamento do personagem homossexual para o personagem judeu, ela produz situações ambíguas: um casal judeu que convida um soldado desconhecido e deprimido para “jantar” com eles, levando-o, meio bêbado, para seu apartamento, denota um comportamento no mínimo estranho. Parece que o judeu é também homossexual ou que o casal está tramando um ménage à trois. Certamente não era essa a intenção do roteirista John Paxton. Mas a adaptação de uma trama típica de assassinato por homofobia para uma trama prototípica de um crime por anti-semitismo deixa necessariamente seqüelas que tornam o enredo desconexo, ainda mais que o argumento político é inserido num gênero fantasioso como o noir, povoado de personagens de moral duvidosa. O expediente do deslocamento tornou-se, contudo, comum em Hollywood, sobretudo com personagens “tabus” de judeus e homossexuais: outra adaptação por deslocamento ocorreu, por exemplo, no filme Clamor humano (Home of the Brave, 1949), de Mark Robson, um dos primeiros sobre o preconceito contra os negros realizado em Hollywood, adaptado da peça Home of the Brave (1945), de Arthur Laurents, que tratava do anti-semitismo, ou seja, a vítima, originalmente um personagem judeu na trama, tornava-se um personagem negro. Mais tarde, em Uma mulher diferente (That Cold Day in the Park, 1969), o diretor Robert Altman mudou o sexo do protagonista da novela homônima de Richard Miles (pseudônimo do ator Peter Miles) sobre um homossexual rico e solitário que caça um jovem num parque para viver com ele, tornando Sandy Dennis uma rica e solitária caçadora de rapazes…

Superior a Rancor, e produzido simultaneamente, permanece A luz é para todos (Gentleman’s Agreement, EUA, 1947, 118’), de Elia Kazan, que estreou poucos meses depois. O filme foi lançado em DVD pela Fox Home Entertainment, que também suprimiu na edição brasileira os extras mais relevantes do DVD americano, que incluem um comentário em áudio por Celeste Holm, June Havoc e pelo crítico de cinema Richard Schickel, o documentário AMC Backstory Episode e duas atualidades Fox Movietone da época.Geralmente considerado “o primeiro filme de Hollywood a abordar diretamente o anti-semitismo”, ele foi, na verdade, o segundo (em ordem de lançamento) a abordar o anti-semitismo após o Holocausto, com todo o peso da consciência do que essa visão deformada do mundo foi capaz de produzir, já que em A vida de Émile Zola (The Life of Emile Zola, EUA, 1937), de William Dieterle, o tema havia sido tratado em metafórica conexão com a situação contemporânea na Alemanha nazista, e em O grande ditador (The Great Dictator, 1940), de Charles Chaplin, a metáfora do anti-semitismo alemão já era a mais explícita possível.

Após o Holocausto, era tão premente a necessidade de denunciar o anti-semitismo que havia lavado àquele monstruoso evento, talvez o mais traumático da História, quanto era problemática a maneira correta de abordá-lo no cinema narrativo, geralmente associado à diversão. Embora os grandes estúdios de Hollywood pertencessem a empresários judeus, estes recusavam produzir filmes com temática “judaica”, num esforço de erradicar a imagem de imigrantes e de não afastar o público que procurava no cinema nada mais que entretenimento. Contudo, depois da guerra, os relatos sobre o Holocausto começaram a mudar o comportamento de Hollywood. Mesmo sendo metodista, conservador e republicano, Darryl Zanuck, diretor de produção da Fox, decidiu produzir um filme baseado no best-seller Gentleman’s Agreement de Laura Hobson. O roteiro foi escrito pelo judeu Moss Hart e a direção coube ao não-judeu Kazan, nascido em Istambul, de pais gregos, e que já despontava como um dos grandes diretores americanos. No filme, um jornalista cristão (Gregory Peck) é incumbido de escrever uma série de artigos sobre o anti-semitismo; procurando uma abordagem inédita, ele resolve passar-se por judeu; logo descobre o que significa ser vítima do preconceito, disseminado até mesmo entre alguns judeus, na forma do auto-ódio.

Em suas memórias, Kazan lamentou não ter podido abordar o tema com mais profundidade, mas o fato é que A luz é para todos conseguiu abalar a consciência das platéias expondo o “acordo de cavalheiros” (do título original) existente na elite americana, através do qual os judeus deveriam ser barrados de seu meio. Na época, alguns grupos judaicos opuseram-se à realização do filme, argumentando que falar de anti-semitismo acabaria provocando mais anti-semitismo. A resposta do roteirista foi criar um personagem antipático de rico industrial judeu que sustenta esse ponto de vista. O já consagrado ator John Garfield, vindo do teatro ídiche e cujo nome verdadeiro era Julius Jacob Garfinkel, aceitou seu papel secundário por julgar o tema do filme da maior importância. Premiado com três Oscars (Filme, Diretor, Atriz Coadjuvante), A luz é para todos jamais menciona o Holocausto, mas o evento está presente em cada gesto de revolta do personagem do jornalista contra o conformismo de sua namorada e a discriminação da sociedade, num apelo enérgico para que todos se transformem para que um novo Holocausto jamais possa voltar a ocorrer.

Por seu lado, apesar das situações deslocadas do roteiro adaptado para outro tipo de preconceito e da produção barata da RKO, Rancor possui qualidades, graças à criatividade de Edward Dmytryk, que investiu a maior parte do orçamento na contratação de bons atores, reduzindo ao máximo os gastos com cenários e iluminação, o que propiciou um clima sombrio que contribui para o sentido geral do filme. Como notou Marcel Martin, em A linguagem cinematográfica, a ação de Rancor desenrola-se inteiramente à noite e durante uma única noite; as lâmpadas desumanizam os semblantes e retrabalham as superfícies em manchas brilhantes ou obscuras, numa utilização brutal da luz que gera um asfixiante mal-estar. O filme já abre com o crime, visto à maneira de um teatro de sombras, projetadas na parede da sala do apartamento da vítima. Segue-se a perícia e a investigação, que culmina com a armadilha montada contra o suspeito pelo investigador Capitão Finlay (Robert Young), com a colaboração do simpático Sargento Peter Keeley (Robert Mitchum), que antes hesitara em colaborar devido ao esprit de corps. O detetive chega à conclusão de que o assassinato não foi motivado, ou seja, não teve motivo pessoal de vingança ou interesse material.

O anti-semita psicopata chega a matar possuído pelo ódio abstrato por todo e qualquer judeu: “O ódio é como uma arma”, explica o detetive com ares de sociólogo a um soldado irlandês que reluta em colaborar na caça ao criminoso; ele o convence explicando não se tratar “apenas” de uma vítima judia: amanhã poderá ser um católico irlandês ou qualquer outro membro de um grupo social eleito como objeto do ódio. No final, o suspeito cai na armadilha e tenta escapar; o investigador baleia-o na fuga, a sangue frio, e comenta sem qualquer traço de piedade sobre a morte do soldado: “Ele já estava morto e não sabia”. Indicado para o Oscar de Melhor Filme de 1947, Rancor perdeu merecidamente para A luz é para todos, que abordava o anti-semitismo de forma mais profunda e sem os rodeios maneiristas e a solução fácil e brutal de um filme noir comunista, ou seja, postulando a mudança de comportamento de cada “cidadão honesto” e não simplesmente a eliminação dos anti-semitas patológicos.

Links:

- DVD de Rancor.
- DVD de Crossfire.
- DVD de A luz é para todos.
-
DVD de Gentleman's Agreement.

Luiz Nazario

terça-feira, março 06, 2007

Cthulhu silencioso


A H.P. Lovecraft Historical Society, lançou em 2005 uma bizarra adaptação em tom de pot-pourri e utilizando a estética do cinema silencioso do crispado e convulso universo do escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft denominada The Call of Cthulhu. O estreante Andrew Leman assina a bizarra película fortemente inspirada no cinema expressionista alemão, o que percebe-se pela pesada maquiagem dos personagens e ampla e exagerada – caricatural seria a melhor palavra – estilização. O filme emprega o chamado "mitoscópio", mescla de técnicas diversas advindas para criação de uma "reprodução" mais ou menos perfeita de um filme dos anos 1920.

Como no cinema de Guy Maddin, temos aqui um jogo – embora bem menos perverso que o cinema criado pelo canadense – de reativação da estilização pelo viés da nostalgia. É notável que Leman e seus colaboradores tenham optado por representar o difícil universo de Lovecraft abandonando o mundo de efeitos de maquiagem e 3D, que costuma ser a escolha de diretores lovecraftianos como Guillermo Del Toro, em prol da imagem delicadamente construída pela estilização.

- Link do filme na Internet.

Alcebiades Diniz Miguel

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Monstros antigos e modernos




Acima, impressionantes imagens retiradas, respectivamente, dos tratados de Vesalius, Paré e Liceti, disponíveis no site da exposição Les Monstres à la Renaissance et à l’âge classique. Abaixo, o pôster oficial do filme O Motoqueiro Fantasma e o esboço de William Stout para O Labirinto do Fauno.




É notável a recente multiplicação dos monstros nas telas de cinema: filmes nos quais os personagens principais são seres humanos divididos por uma essência monstruosa atingem imenso sucesso. Tal sucesso algumas vezes é expresso por milionárias bilheterias – como é o caso recente do blockbuster Motoqueiro Fantasma (Ghost Rider, 2007), que arrecadou em seu final de semana de estréia US$ 44,5 milhões, a melhor renda de abertura da história do cinema. Ou por sagração pela crítica especializada – como é o caso de O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006), sombria e violenta narrativa alegórica criada pelo diretor mexicano especializado em “monstros” Guillermo del Toro, que recebeu 6 indicações ao Oscar.

De qualquer forma, o persistente fascínio que o monstro tem para as massas – fascínio cuja estrutura narrativa, essência estética e conseqüência política foram dissecadas por Luiz Nazario em seu estudo Da Natureza dos Monstros – não é atual. A monstruosidade finca suas raízes em momentos ancestrais da humanidade: sua sombra surge, em cores vivas ou suaves e escondidos meio-tons, não apenas através da criação narrativa, artística e poética, mas também nos ensaios filosóficos, nos tratados teológicos, nos estudos médicos, nos projetos políticos. É essa monstruosidade difusa e encarada como objeto do universo “real” que surge na exposição Les Monstres à la Renaissance et à l’âge classique, reproduzida no site da Bibliotèque Interuniversitaire de Médecine, em Paris. As gravuras, nos tratados médicos, ultrapassam a função descritiva e surgem carregadas de significados, estigmas e sugestão. O hibridismo das criaturas alimenta-se e alimentaria longa cadeia imagética. Essa cadeia, enriquecida de outras fontes e formas, chega aos nossos dias e, a todo vapor, promete não apenas durar um tempo ainda maior mas, alimentada pelos fantasmas cotidianos que surgem da própria realidade prosaica, crescer, aumentar e multiplicar.

- Les Monstres à la Renaissance et à l’âge classique.
- Esboços de William Stout para O Labirinto do Fauno e sketchbook de Guillermo del Toro para o mesmo filme.
- Site oficial de O Motoqueiro Fantasma.

Alcebiades Diniz Miguel