domingo, março 11, 2007

Rancor


A Silver Screen Collection lançou mais um clássico do cinema noir: Rancor (Crossfire, EUA, 1947), de Edward Dmytrik, o primeiro filme a abordar de maneira ficcional, logo após o Holocausto, o fenômeno do anti-semitismo. Infelizmente, o lançamento foi realizado sem cuidado, excluindo os extras que acompanham a edição americana: o excelente documentário de dez minutos Crossfire: Hate is Like a Loaded Gun, que explica como foi difícil realizar Rancor, e como o diretor quase teve sua carreira arruinada pela “caça às bruxas” no final dos anos 1940 – tanto ele quanto o produtor do filme, Adrian Scott, dois dos “Dez de Hollywood”, foram presos por desrespeito ao Congresso ao recusarem responder às questões da Comissão de Investigação sobre comunistas atuantes na indústria do cinema, sendo que Dmytryk, depois de alguns meses de prisão, decidiu colaborar, delatando os comunistas que conhecia; os comentários dos historiadores especialistas em filme noir Alain Silver e James Ursini; e trechos de uma entrevista em áudio de Dmytryk.

Além disso, como observou o sítio da 2001 Vídeo, a sinopse no rótulo do DVD Rancor da Silver Screen Collection é “totalmente incompreensível”. De fato, lê-se o seguinte na contracapa: Este é um filme “noir” incomum, pois é um dos primeiros a lidar com o tema do anti-semitismo. Detetive de Washington cansado (Robert Young) tem que adquirir ao fundo de um assassinato aparentemente motivo-necessitado, com o principal suspeito um soldado de boozy que só pode recordar vagamente os eventos da noite. A história realmente cava seus saltos de sapatos em muitos assuntos pós-guerras, como os soldados precisam de um lugar para pôr toda sua violência uma vez a guerra acabou e os outros problemas de reajustar a vida de civil. Robert Mitchum estrela como um amigo do soldado de acusado que ajuda o detetive a resolver o caso. Edward Dmytryk já tinha se estabelecido como um diretor de noir bom com Assassinato, minha doçura, fez alguns anos mais cedo. Aqui ele leva o sombrio, mundo de meia-noite de pessoas desesperadas e mergulhos indigentes e astutamente voltas isto em um veículo para a exploração de fanatismo. O resultado é um quietantemente atordoante, baixo-chave clássico. Jovem é especialmente bom como o detive e obtém ampla ajuda de Mitchum e Robert Ryan nisto bem escrito, drama atmosférico.

Essa sinopse aloprada, provavelmente traduzida do original por meio de algum programa automático de tradução, paradoxalmente reflete algo do improvisado da trama, já que o próprio filme é uma estranha tradução do romance The Brick Foxhole, do escritor e cineasta Richard Brooks. No romance original, o preconceito enfocado não é o anti-semitismo, e sim a homofobia: um homossexual convidava um soldado bêbado para passar a noite em sua casa; o soldado era seguido por dois colegas à distância, que acabavam invadindo o apartamento para participar da “festa”; no final da orgia, o homossexual era assassinado. Essa trama típica relacionada aos crimes de homofobia, pesada demais para a Hollywood dos anos 1940, foi “adaptada” para o tema do anti-semitismo, e produziu, em Rancor, situações deslocadas.

No filme, que se passa em Washington, a vítima é o intelectual judeu chamado Joseph Samuels (Sam Levene) que, certa noite, ouve sua namorada, dona de um bar, pedir-lhe que converse com o jovem soldado Arthur Mitchell (George Cooper), que ela percebe estar a deprimir-se no balcão com os colegas de quartel - Floyd Bowers (Steve Brodie), Bill Williams (Richard Benedict) e o falante insuportável Montgomery (Robert Ryan); depois, o casal decide levar o doce e sensível soldado Mitchell para jantar, separando-o dos colegas; como a mulher devia trocar de roupa, Mitchell fica a sós com Samuel; pouco depois, o apartamento é invadido pelo enciumado Montgomery e seu cumpincha Bowers, que querem participar da “festa” que imaginam estar acontecendo ali. Durante uma discussão, Montgomery revela-se um anti-semita psicopata, que acaba espancando Samuel até a morte.

Ficamos sabendo depois que Mitchell, sobre quem recai a suspeita do assassinato, já havia deixado o apartamento no momento do crime, tendo passado a noite com a femme fatale Ginny Tremaine (Gloria Grahame), que lhe lembraria sua esposa. Mas a prostituta, que empresta a chave de seu apartamento para que ele vá para lá antes dela, chega tarde ao “encontro romântico de sua vida”: Mitchell cai no sono e é despertado por um velho mentiroso compulsivo (Paul Kelly) que se diz marido, ex-marido ou amante de Ginny, movendo-se à vontade no apartamento. O estranho casal poderia ajudar a inocentar Mitchell, mas a prostituta hesita em prestar depoimento, e por fim, a confirmação do velho “marido” em nada ajuda. Esses dois personagens apenas preenchem a cota de derrotados que um filme noir deve ostentar.

Além do “assassinato sem motivo”, ou motivado pela paixão anti-semita, o outro tema do filme é o da desintegração de soldados que retornam da guerra e não conseguem readaptar-se à vida civil: imbuídos de seu heroísmo nos campos de batalha, desprezam os empregos comuns que consideram incompatíveis com o status glorioso que julgam ter conquistado, assim como os civis “covardes”, que enriqueceram enquanto eles se sacrificavam nos campos de batalha: acabam por se entregar ao vício, à vagabundagem, ao crime e à violência gratuita.

Quanto à adaptação por deslocamento do personagem homossexual para o personagem judeu, ela produz situações ambíguas: um casal judeu que convida um soldado desconhecido e deprimido para “jantar” com eles, levando-o, meio bêbado, para seu apartamento, denota um comportamento no mínimo estranho. Parece que o judeu é também homossexual ou que o casal está tramando um ménage à trois. Certamente não era essa a intenção do roteirista John Paxton. Mas a adaptação de uma trama típica de assassinato por homofobia para uma trama prototípica de um crime por anti-semitismo deixa necessariamente seqüelas que tornam o enredo desconexo, ainda mais que o argumento político é inserido num gênero fantasioso como o noir, povoado de personagens de moral duvidosa. O expediente do deslocamento tornou-se, contudo, comum em Hollywood, sobretudo com personagens “tabus” de judeus e homossexuais: outra adaptação por deslocamento ocorreu, por exemplo, no filme Clamor humano (Home of the Brave, 1949), de Mark Robson, um dos primeiros sobre o preconceito contra os negros realizado em Hollywood, adaptado da peça Home of the Brave (1945), de Arthur Laurents, que tratava do anti-semitismo, ou seja, a vítima, originalmente um personagem judeu na trama, tornava-se um personagem negro. Mais tarde, em Uma mulher diferente (That Cold Day in the Park, 1969), o diretor Robert Altman mudou o sexo do protagonista da novela homônima de Richard Miles (pseudônimo do ator Peter Miles) sobre um homossexual rico e solitário que caça um jovem num parque para viver com ele, tornando Sandy Dennis uma rica e solitária caçadora de rapazes…

Superior a Rancor, e produzido simultaneamente, permanece A luz é para todos (Gentleman’s Agreement, EUA, 1947, 118’), de Elia Kazan, que estreou poucos meses depois. O filme foi lançado em DVD pela Fox Home Entertainment, que também suprimiu na edição brasileira os extras mais relevantes do DVD americano, que incluem um comentário em áudio por Celeste Holm, June Havoc e pelo crítico de cinema Richard Schickel, o documentário AMC Backstory Episode e duas atualidades Fox Movietone da época.Geralmente considerado “o primeiro filme de Hollywood a abordar diretamente o anti-semitismo”, ele foi, na verdade, o segundo (em ordem de lançamento) a abordar o anti-semitismo após o Holocausto, com todo o peso da consciência do que essa visão deformada do mundo foi capaz de produzir, já que em A vida de Émile Zola (The Life of Emile Zola, EUA, 1937), de William Dieterle, o tema havia sido tratado em metafórica conexão com a situação contemporânea na Alemanha nazista, e em O grande ditador (The Great Dictator, 1940), de Charles Chaplin, a metáfora do anti-semitismo alemão já era a mais explícita possível.

Após o Holocausto, era tão premente a necessidade de denunciar o anti-semitismo que havia lavado àquele monstruoso evento, talvez o mais traumático da História, quanto era problemática a maneira correta de abordá-lo no cinema narrativo, geralmente associado à diversão. Embora os grandes estúdios de Hollywood pertencessem a empresários judeus, estes recusavam produzir filmes com temática “judaica”, num esforço de erradicar a imagem de imigrantes e de não afastar o público que procurava no cinema nada mais que entretenimento. Contudo, depois da guerra, os relatos sobre o Holocausto começaram a mudar o comportamento de Hollywood. Mesmo sendo metodista, conservador e republicano, Darryl Zanuck, diretor de produção da Fox, decidiu produzir um filme baseado no best-seller Gentleman’s Agreement de Laura Hobson. O roteiro foi escrito pelo judeu Moss Hart e a direção coube ao não-judeu Kazan, nascido em Istambul, de pais gregos, e que já despontava como um dos grandes diretores americanos. No filme, um jornalista cristão (Gregory Peck) é incumbido de escrever uma série de artigos sobre o anti-semitismo; procurando uma abordagem inédita, ele resolve passar-se por judeu; logo descobre o que significa ser vítima do preconceito, disseminado até mesmo entre alguns judeus, na forma do auto-ódio.

Em suas memórias, Kazan lamentou não ter podido abordar o tema com mais profundidade, mas o fato é que A luz é para todos conseguiu abalar a consciência das platéias expondo o “acordo de cavalheiros” (do título original) existente na elite americana, através do qual os judeus deveriam ser barrados de seu meio. Na época, alguns grupos judaicos opuseram-se à realização do filme, argumentando que falar de anti-semitismo acabaria provocando mais anti-semitismo. A resposta do roteirista foi criar um personagem antipático de rico industrial judeu que sustenta esse ponto de vista. O já consagrado ator John Garfield, vindo do teatro ídiche e cujo nome verdadeiro era Julius Jacob Garfinkel, aceitou seu papel secundário por julgar o tema do filme da maior importância. Premiado com três Oscars (Filme, Diretor, Atriz Coadjuvante), A luz é para todos jamais menciona o Holocausto, mas o evento está presente em cada gesto de revolta do personagem do jornalista contra o conformismo de sua namorada e a discriminação da sociedade, num apelo enérgico para que todos se transformem para que um novo Holocausto jamais possa voltar a ocorrer.

Por seu lado, apesar das situações deslocadas do roteiro adaptado para outro tipo de preconceito e da produção barata da RKO, Rancor possui qualidades, graças à criatividade de Edward Dmytryk, que investiu a maior parte do orçamento na contratação de bons atores, reduzindo ao máximo os gastos com cenários e iluminação, o que propiciou um clima sombrio que contribui para o sentido geral do filme. Como notou Marcel Martin, em A linguagem cinematográfica, a ação de Rancor desenrola-se inteiramente à noite e durante uma única noite; as lâmpadas desumanizam os semblantes e retrabalham as superfícies em manchas brilhantes ou obscuras, numa utilização brutal da luz que gera um asfixiante mal-estar. O filme já abre com o crime, visto à maneira de um teatro de sombras, projetadas na parede da sala do apartamento da vítima. Segue-se a perícia e a investigação, que culmina com a armadilha montada contra o suspeito pelo investigador Capitão Finlay (Robert Young), com a colaboração do simpático Sargento Peter Keeley (Robert Mitchum), que antes hesitara em colaborar devido ao esprit de corps. O detetive chega à conclusão de que o assassinato não foi motivado, ou seja, não teve motivo pessoal de vingança ou interesse material.

O anti-semita psicopata chega a matar possuído pelo ódio abstrato por todo e qualquer judeu: “O ódio é como uma arma”, explica o detetive com ares de sociólogo a um soldado irlandês que reluta em colaborar na caça ao criminoso; ele o convence explicando não se tratar “apenas” de uma vítima judia: amanhã poderá ser um católico irlandês ou qualquer outro membro de um grupo social eleito como objeto do ódio. No final, o suspeito cai na armadilha e tenta escapar; o investigador baleia-o na fuga, a sangue frio, e comenta sem qualquer traço de piedade sobre a morte do soldado: “Ele já estava morto e não sabia”. Indicado para o Oscar de Melhor Filme de 1947, Rancor perdeu merecidamente para A luz é para todos, que abordava o anti-semitismo de forma mais profunda e sem os rodeios maneiristas e a solução fácil e brutal de um filme noir comunista, ou seja, postulando a mudança de comportamento de cada “cidadão honesto” e não simplesmente a eliminação dos anti-semitas patológicos.

Links:

- DVD de Rancor.
- DVD de Crossfire.
- DVD de A luz é para todos.
-
DVD de Gentleman's Agreement.

Luiz Nazario