quinta-feira, maio 24, 2007

Nasce a World Cinema Foundation

Escrevi em As sombras móveis, em 1999: “[…] O cinema mudo vive sua redescoberta, iniciada com as comemorações do centenário, que impulsionou a política mundial de restauração de películas, apoiada pela Unesco, seja para mostras e festivais de cinema, seja para comercialização de vídeos, LDs e DVDs. Com as novas tecnologias e a globalização do mercado, desaparecem as fronteiras entre o cultural e o comercial, e surge, pela primeira vez na História, uma oportunidade real de salvação e difusão da memória visual da humanidade. E assim, parafraseando Abel Gance, todos os clássicos, todos os mitos do cinema, e mesmo todas as cinematografias esperam sua ressurreição luminosa, e os tesouros das cinematecas acumulam-se às portas do mercado para ganhar uma nova vida através da tecnologia digital. O tempo da imagem voltou.”

Quase dez anos depois, Leon Cakoff escreveu: “Pelo terceiro ano consecutivo, impulsionado pelo mercado de DVDs, clássicos do cinema têm sido restaurados para ganhar sessões especiais em Cannes” (Jornal da Mostra, nº 492, 30ª Mostra, 15 mai. 2007). Nesta edição do festival foi anunciado a 22 de maio o lançamento da World Cinema Foundation (WCF), uma associação de cineastas, sem fins lucrativos, criada a partir de uma idéia de Martin Scorsese, com o objetivo de apoiar financeiramente a preservação, a restauração e a difusão de filmes de países de todo o mundo, em particular do cinema da África, da América Latina, da Ásia e da Europa central.

Integram a iniciativa o cineasta brasileiro Walter Salles, o chinês Wong Kar-Wai, o malinês Souleymanne Cisse, os mexicanos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu, o britânico Stephen Frears, o mauritano Abderrahmane Sissako. Como observou Scorsese, é necessário atuar com a maior rapidez e eficácia para que a memória cinematográfica de cada país não seja perdida: “90% dos filmes rodados antes de 1950 nos Estados Unidos já não existem. As coisas mudaram, mas é impossível recuperar o que está perdido. Falta tenacidade dos cineastas, isso é o que tento despertar aqui”. Cada cineasta deveria trabalhar em seu país para recuperar seu patrimônio nacional e as grandes cinematecas e os festivais do mundo deveriam “adotar” filmes, buscando os fundos necessários para sua restauração e distribuição internacional. A fundação prevê a formação de uma rede formada pelas cinematecas de todo o mundo para apresentar os filmes restaurados antes de sua divulgação em DVD (Scorsese, Walter Salles e Wong Kar-Wai lançam fundação. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 mai. 2007, Ilustrada).

Foram exibidos em Cannes os três primeiros títulos cuja restauração foi apoiada pela associação: Transes (Marrocos, 1981), de Ahmed El Maanouni, restaurado pela Cineteca di Bologna, e apresentado por Martin Scorsese; Limite (Brasil, 1931), de Mário Peixoto restaurado pela Cinemateca Brasileira, VideoFilmes, Arquivos Mario Peixoto, com a participação da Arte France, e apresentado por Walter Salles; A floresta dos enforcados Padurea Spinzuratilor, Romênia, 1964), de Liviu Ciulei, restaurado pelo Arquivo Nacional do Filme da Romênia, e apresentado por Cristi Puiu.

O 60º Festival de Cannes celebra ainda quatro efemérides com filmes cujas cópias foram recentemente restauradas para relançamento em DVD: dois cinqüentenários de clássicos – o de Canal (Kanal, Polônia, 1957), de Andrzej Wajda, reapresentado pelo próprio diretor, honrado à época com o Prêmio Especial do Júri de Cannes; e o de Doze homens e uma sentença (Twelve Angry Men, EUA, 1957), de Sidney Lumet, com uma homenagem a Henry Fonda por Jane Fonda; e dois centenários de atores: o de John Wayne, com a exibição de Rio Bravo (idem, EUA, 1959), de Howard Hawks (cópia restaurada pela Warner Bros.); e Hondo (idem, EUA, 1953), rodado em 3D por John Farrow (cópia restaurada pela Batjac Productions); e o de Laurence Olivier, com uma mostra de suas adaptações de Shakespeare: Henrique V (Henry V, Inglaterra, 1944), Hamlet (idem, Inglaterra, 1948) e Ricardo III (Richard III, Inglaterra, 1955) – em cópias restauradas pela Granada International – precedida pelo curta Words for Battle (Inglaterra, 1941), de Humphrey Jennings, narrado pelo ator (cópia restaurada pelo British Film Institute).

Além destas mostras, será apresentado um verdadeiro pot-pourri de filmes em cópias restauradas: As aventuras do Príncipe Ahmed (Die Abenteuer des Prinzen Achmed, Alemanha, 1926), de Lotte Reiniger (restauração: Deustches Filmmuseum Frankfurt am Main); La Bandera (idem, França, 1935), de Julien Duvivier (restauração: CNC - Archives Françaises du Film e SND); Donne-moi tes yeux (França, 1943), de Sacha Guitry (restauração: Cinémathèque Française e Studio Canal); Yoyo (França, 1965), de Pierre Etaix (restauração: Fondation Groupama Gan pour le Cinéma); O vampiro da noite (Dracula, Inglaterra, 1958), de Terence Fisher (restauração: British Film Institute e Swashbuckler Films); Bound by Chastity / L’arche de chasteté (Coréia do Sul, 1962), de Shin Sang-Ok (restauração: Korean Film Archives); Por que Israel (Pourquoi Israel, França, 1973), de Claude Lanzmann (restauração: Why Not Productions); Mikey & Nicky (EUA, 1976), de Elaine May (nova cópia: Carlotta Films); Suspiria (idem, Itália, 1977), de Dario Argento (restauração: Luciano Tovoli e Wild Side Films); Assim, sob a égide da Federação Internacional dos Arquivos do Filme, a salvaguarda do patrimônio cinematográfico torna-se, cada vez mais, o objeto de atenções particulares em numerosos países do mundo. Já o Brasil, cujo Estado tradicionalmente despreza a educação e a cultura, mal desperta para o problema do desaparecimento lento, gradual e seguro de seu patrimônio cinematográfico.

Links:
- Festival de Cannes online.

Luiz Nazario