terça-feira, maio 05, 2009

Coleção Cinema Marginal Brasileiro




Capas dos primeiros lançamentos da Coleção Cinema Marginal.



Imagens dos filmes Bang bang, Meteorango Kid e Os Monstros de Babaloo.

Eugênio Puppo e sua empresa Heco Produções têm realizado um notável trabalho de recuperação do cinema marginal brasileiro. Depois da organização de diversas mostras com publicação de catálogo (Walter Hugo Khouri – Meio Século de Cinema; Nelson Rodrigues e o Cinema; A Montagem no Cinema; Cinema Marginal Brasileiro e suas Fronteiras; Ozualdo Candeias – 80 Anos; José Mojica Marins – Retrospectiva da Obra) e da bem sucedida realização do projeto de recuperação do Acervo Primo Carbonari, Puppo decidiu lançar-se à produção de DVDs com alguns títulos da fase underground do cinema brasileiro que permaneciam invisíveis, ameaçando desaparecer fisicamente ou cair no total esquecimento.

O lançamento da Coleção Cinema Marginal ocorre graças à parceria entre a Heco Produções e a Lume Filmes do Maranhão, encarregada da distribuição, e que se notabilizou pelo lançamento de 32 títulos em DVD de filmes de arte estrangeiros, entre os quais Utamaro e suas cinco mulheres e Mulheres da noite, de Kenji Mizoguchi; Felizes juntos, de Wong Kar Wai; Down by Law, de Jim Jarmusch; Vermelhos e brancos, de Miklos Jancsó; e Stroszek, de Werner Herzog. As duas empresas fundaram um selo de cinema brasileiro de arte para distribuir em DVD 38 filmes antes inacessíveis dos anos de 1960-1970.

Cabe observar que Eugênio Puppo tentava há oito anos lançar essa coleção (teve a idéia durante a primeira edição da mostra Cinema Marginal Brasileiro e suas Fronteiras realizada pela Heco em maio de 2001 no CCBB de São Paulo, quando foram exibidos 40 filmes daquele cinema), mas o projeto não obteve qualquer patrocínio, seja privado ou estatal: o atual investimento é arriscado e depende apenas da venda direta para pagar-se, tanto mais difícil quanto a Coleção dirige-se a um público restrito: aos cinéfilos brasileiros, aos estudantes e professores de cinema, aos críticos, teóricos e pesquisadores do cinema brasileiro.

Cinema marginal ou cinema de poesia (como preferia Júlio Bressane)? Cinema underground ou cinema udigrúdi (como ironizou Glauber Rocha)? Cinema experimental ou cinema de invenção (como definiu Jairo Ferreira)? As diversas denominações, elogiosas ou sarcásticas, revelam a própria inclassificação desses filmes realizados à margem de um cinema já marginal, num país marginal, e ainda então marcado por uma guerrilha urbana tentando “derrubar” uma ditadura... Com A margem (1967), de Ozualdo Candeias, nascia esse cinema diferente, mais focado nos marginais da sociedade que na classe operária “revolucionária”, na qual os intelectuais de esquerda apostavam. O caminho para o Paraíso que as Reformas de Base do governo João Goulart prometiam foi brutalmente interrompido pelo golpe de 1964, aprofundado com o AI-5. O Cinema Marginal representou uma resistência artística a esse período de repressão (1967-1973), com as produções associadas de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla na Belair, e as produções solitárias de João Silvério Trevisan, Andrea Tonacci, Ozualdo Candeias, José Agrippino de Paula, Carlos Reichenbach, André Luiz Oliveira, Elyseu Visconti, Geraldo Veloso, Sylvio Lanna, Jairo Ferreira, João Callegaro, entre outros.

O Cinema Marginal rompeu com o Cinema Novo pela percepção de que os cinemanovistas sacrificavam a experimentação na tentativa de popularizar-se. Os marginais pretendiam continuar independents da ditadura e do Mercado, explorando a linguagem em produções quase caseiras, destinadas a um público incerto, mas também livre de compromissos com a ditadura e com seus valores, expressos nos cortes da censura e na política cinematográfica ditada pela Embrafilme e pelos cinemanovistas nela encastelados.

O rótulo de Cinema Marginal era pejorativo e com ele os cinemanovistas pretendiam atingir aqueles seus colegas que permaneciam à margem da Embrafilme. Rogério Sganzerla lamentava que a programação audiovisual tornava-se cada vez mais comprometida com a ignorância e a burocracia, com o binômio pão e circo, com o modismo e a politicagem. Os marginais tentavam descobrir por si próprios, “com a câmera à altura do olho e do ouvido, com nossos próprios meios e com limitados recursos, tudo o que fosse possível sobre este lugar em que vivemos intensamente […] onde o abuso de autoridade tem sido a constante”. O cinema libertário dos dissidentes estava em sintonia com os anseios da contracultura expressos em maio de 1968. Nas filmagens de Blá, Blá, Blá, os atores saíram à rua com armas de brinquedo, arriscando serem confundidos com guerrilheiros; mas, como observou seu diretor, Andrea Tonacci, esse cinema não era marginal, e sim marginalizado. Hoje o termo é aceito pelos seus diretores, uma vez que acaba por valorizar a postura deles, menos conivente que a dos que lhes lançavam aquela pecha.

Cada DVD da Coleção Cinema Marginal é acompanhado por um livreto de 16 páginas com ensaios assinados por especialistas. Os extras contêm documentários raros e entrevistas inéditas produzidas para o DVD.

O primeiro volume traz o longa-metragem Bang bang (1971, 35 mm, P&B, 81’), de Andrea Tonacci, sobre um ator que confunde sua pessoa com seu personagem, sendo perseguido por pessoas e personagens, num caos narrativo; o média-metragem Blá, blá, blá (1968, 16mm, 26’, p&b), do mesmo cineasta, sobre um ditador que, confrontado por revoltas e guerrilhas, perde o controle da situação; e o curta-metragem Olho por olho (1966, 16mm, 20’, p&b), sobre alienados e frustrados da classe média paulista que circulam de carro pela cidade liberando sua agressividade. O DVD inclui ainda uma palestra de Ismail Xavier analisando Bang bang e um depoimento inédito de Tonacci.

O segundo volume recupera o longa-metragem Sem essa, aranha (1970, 35mm, 92’, cor), de Rogério Sganzerla, sobre “o último capitalista brasileiro”, freqüentando inferninhos em seu exílio no Paraguai. O DVD inclui o curta-metragem A miss e o dinossauro – Bastidores da Belair (2005, Super 8, 18’, cor), de Helena Ignez, que registra a festa de despedida da produtora Belair, em 1970, antes da partida de Sganzerla, Bressane, Ignez e Guará para o exílio em Londres; e o curta-metragem Histórias em quadrinhos (1969, 35mm, 9’, cor), de Sganzerla e Álvaro de Moya, contando com técnica de quadro a quadro a evolução das histórias em quadrinhos. Inclui uma entrevista gravada com Sganzerla em 1990 e até hoje inédita, com duas horas e meia de duração.

O terceiro volume apresenta Os monstros de Babaloo (1970, 35mm, 120’, p&b), de Elyseu Visconti, proibido à época pela censura, pela sua sátira selvagem da classe média sob a ditadura; o curta-metragem Ticumbi (1978), de Visconti, um registro documental da festa popular na cidade de Conceição da Barra, no Espírito Santo; e outros três curtas-metragens documentais antropológicos: Boi Calemba (1979), Cavalo Marinho (1979) e Feira de Campina Grande (1979), além de um depoimento inédito de Elyseu Visconti e outro de Fernando Coni Campos.

O quarto volume inclui o longa-metragem Meteorango Kid – O herói intergaláctico (1969, 35mm, 85’, p&b), de André Luiz Oliveira, sobre o universitário Lula, oprimido pela ditadura e pela moral da sociedade, que se transporta, intergaláctico, ao mundo de seus delírios libertários. O DVD inclui, além de um depoimento inédito de Oliveira, três curtas-metragens antropológicos: Doce amargo (co-direção José Umberto, 1968, 16mm, 20’, p&b), sobre um vendedor delirante de pirulitos em Salvador, filme localizado numa fita U-Matic em péssimo estado, que Puppo recuperou, sendo este agora seu único registro existente; A fonte (1970, 16 e 35mm, 12’, p&b e cor), sobre construção da escultura Fonte do Mercado realizada pelo escultor Mário Cravo na praça do antigo Mercado Modelo, em Salvador; e O Cristo de Vitória da Conquista (1981, 16mm, 14’, p&b e cor), sobre a construção da escultura de 10 metros realizada por Cravo na estrada Salvador-Vitória da Conquista.

A Coleção Cinema Marginal Brasileiro tem uma tiragem limitada, e se o projeto for bem sucedido, como desejamos que seja – o Lado B do cinema brasileiro é freqüentemente mais interessante que o Lado A –, Puppo pretende lançar um novo volume a cada dois meses, totalizando 12 DVD’s. O cuidado com que cada volume desta Coleção foi produzido é uma lição para muitas empresas que pretendem atingir o mesmo público, desprovidas, contudo, da paixão que Puppo demonstra pelo trabalho arqueológico de prospecção e descoberta.

- Ficha Técnica da Coleção: Idealização e produção executiva: Frederico Machado e Eugênio Puppo. Curadoria e concepção editorial: Eugênio Puppo. Coordenação de produção: Marcelo Colaiacovo. Assistência de produção: Santilha Sousa e Felipe Ludovice. Direção de arte: Pedro Di Pietro. Edição de textos: Bruno Zeni. Revisão de textos: Marília Rodriguez Zanetti. Edição de vídeos: Alexandre Britto. Colaboração: Arthur Autran, Cláudia Colins, Ricardo Carioba e Renan Costa. Autoração do DVD: William Britto. Produção e edição dos DVDs: Heco Produções. Distribuição: Lume Filmes. Apoio Institucional: Cinemateca Brasileira. Apoio Cultural: TPK Express e GFK Comunicação.

- Serviço: Os DVDs serão vendidos a partir do dia 5 de maio nas livrarias Cultura, da Vila, Saraiva e Travessa, e nos sites da Submarino, da Lume e da Heco (em Contato).



Luiz Nazario