sexta-feira, abril 24, 2009

A Sobrevivência do Pré-Cinema

Uma das certezas que temos após a leitura de A grande arte da luz e da sombra, importantíssimo estudo de Laurent Mannoni sobre as pesquisas diversas que levaram inquietações sobre luz e movimento encontradas desde os filósofos da Antiguidade ao cinematógrafo dos irmãos Lumiere, é que haviam outras possibilidades no desenvolvimento da imagem cinemática, outras direções. Contudo, essa outra história acabou não apenas interrompida, mas relegada, pelo raciocínio do progresso, ao plano de "experiências que anteciparam" o invento "que deu certo". Contudo, vez por outra, artistas, animadores e diretores de cinema aproveitam elementos do chamado pré-cinema, que demonstram como a imensa beleza desse universo nunca esteve realmente "obsoleta".

Esse é o caso de dois videoclipes realizados em épocas distintas e recuperando aspectos igualmente diferenciados do pré-cinema e do cinema primitivo. O primeiro, para a música "Tonight Tonight" (1996), do Smashing Pumpkins, dirigido por Jonathan Dayton e Valerie Faris. Trata-se de uma recriação do filmete de George Méliès Le Voyage dans la Lune (1902), com todos os elementos originais (inclusive os efeitos especiais de explosões e perseguições, a perspectiva teatral, a colorização primitiva que tornava cada quadro uma pintura, a lua com rosto humano, etc.) reproduzidos através da moderna tecnologia de vídeo. O clipe pode ser visto aqui.





Ainda mais espetacular é o vídeo feito para a música "We Got Time", do cantor Moray McLaren, dirigido por David Wilson. Filmado diretamente da câmera, sem qualquer artifício ou efeito 3D computacional, vemos diversas vitrolas funcionando como praxinoscópios reproduzindo pequenas animações, na verdade discos que giram ininterruptamente. O foco do vídeo é o eterno ciclo de vida e morte, início e fim, magnificamente exemplificado pelas hipnóticas e misteriosas animações do pré-cinema, com seus espelhos e fendas através dos quais vemos cenas que se repetem ad infinitum. David Wilson também criou os belíssimos desenhos dos discos, curiosa idéia para criação de animações praxinoscópicas inspirada, segundo o diretor no making of, pelos discos produzidos pela gravadora Red Raven nos anos 1950, cada um deles equipado com um "carrossel" de espelhos e uma animação desenhada diretamente no selo do disco. O praxinoscópio, invenção de Charles-Émile Reynaud – um dos grandes mártires do pré-cinema, hoje quase esquecido – em 1877, recebe assim uma bela e justa homenagem com o trabalho de David Wilson, inspiração possível para redescobertas do "primitivo" ou "obsoleto" como possibilidades criativas, recriadas pela mais moderna tecnologia. (Via Motionographer).







Alcebiades Diniz Miguel

segunda-feira, abril 20, 2009

Fotografias, Desenhos e Pinturas Animados

- Um vídeo que recebeu bastante atenção da mídia digital nos últimos dias foi a animação japonesa Wolf and Pig. De fato, trata-se de uma obra de técnica única e inusitada: a animação de fotografias, captadas quadro a quadro, reveladas e depois animadas empregando a metodologia utilizadas em animação stop motion. O resultado é uma mescla de pixilation com as fotomontagens de David Hockney, autor de painéis de paisagens montados com inúmeras fotografias. A complexidade infernal do processo – provavelmente o autor teve de prever, entre outros problemas, mudanças de luz e deslocamento de veículos, pessoas e objetos em dois ambientes diferentes para criar uma animação dentro de outra – aproxima essa criação, aparentemente caseira, da magia obtida pela técnica de grandes animadores do passado (via Smelly Cat).




- Para promover sua nova televisão Cinema 21:9 TV – que, como o nome diz, segue a proporção exata das telas de cinema –, a Philips criou um site com um criativo tableaux vídeo-fotográfico de propaganda, desenvolvido pela Stink Digital e pelo diretor Adam Berg. Trata-se de uma espetacular cena de assalto cinematográfico congelada, mas permitindo a navegação e a descoberta de diversos hotspots nos quais vemos explicações em estilo making of (via Motiongrapher).

- O novo videoclip de Moby foi criado por David Lynch: uma animação com os característicos e grotescos desenhos daquele autor, que começou sua carreira cinematográfica no universo da animação (via Smelly Cat).



- No clássico curta-metragem Guernica (1950) Alain Resnais “animou”, com sua edição, planos-detalhes de pinturas, desenhos e esculturas que Picasso realizou entre 1902 e 1949, recorrendo às vozes de Jacques Pruvost e María Casares recitando um poema de Paul Éluard e à trilha musical de Guy Bernard, com o efeito de tornar a destruição de Guernica (bombardeada em 1937 pela Legião Condor cedida a Franco por Hitler) palpável através da arte. Em 2000, naquela aldeia basca, o centro de pesquisa sobre a paz Gernika Gogoratuz produziu, em colaboração com o The Heinrich Böll Stiftung, o documentário The Bombing of Gernika: The Mark of Men, com depoimentos dos sobreviventes que ainda viviam. O filme incluiu uma apresentação em animação 3D pouco sofisticada, mas efetiva, usando personagens retirados da Guernica de Picasso. Finalmente, em 2008, as experiências de “animação” de obras de arte, e em particular a Guernica de Picasso, foi radicalizada e levada à perfeição pela jovem artista alemã Lena Gieseke em A 3D Exploration of Picasso’s Guernica (basta clicar no link para ver o filme) com o uso dos softwares Maya, Shake e Photoshop, ao som de Nana, de Manuel de Falla, numa experiência fascinante de exploração da pintura cubista como que transformada em grande instalação de madeira. Através de técnicas inovadoras de “contemplação em profundidade”, detalhes antes mal percebidos da obra vêem-se subitamente realçados e re-significados pela imersão espacial do espectador-narrador na pintura-escultura virtual, proporcionada pela câmara subjetiva-objetiva em constante movimento, até sua fixação no belo enquadramento final: a flor que Picasso fez brotar da espada quebrada.

Nota: O curta de Resnais sobre Guernica foi lançado no Brasil como extra da edição em DVD de O Mistério de Picasso (Le Mystere Picasso, 1956) de Henry Georges Clouzot, pela Magnus Opus.







Alcebiades Diniz Miguel/Luiz Nazario

terça-feira, abril 14, 2009

Buñuel, Las Hurdes e Quadrinhos


O documentário surrealista Terra sem pão (Las Hurdes / Tierra sin Pan, 1932) é um dos filmes mais estranhos e ferozes da história do cinema. Em seus intensos 30 minutos vemos – como escreveu Luiz Nazario – o pesadelo da realidade sobrepondo-se ao pesadelo da imaginação, tal como este fora exercitado nos filmes anteriores de Buñuel, O cão andaluz e A idade de ouro. Entre a denúncia de uma realidade miserável – o filme foi proibido pelo governo republicano espanhol – e o exagero caricatural e imaginário, recentemente descoberto por pesquisadores em visita à região, temos o filme mais engajado de Buñuel e um modelo para vários documentários de denúncia que buscam atingir seus objetivos pelo choque de contrastes e pela abolição de qualquer detalhe pitoresco que arruine a força da mensagem.

Tendo em vista o poder subversivo de Terra sem pão, o quadrinista Fermín Solís resolveu recriar a obra no formato dos quadrinhos, ao mesmo tempo em que buscava algumas chaves para a obra na recepção do filme pela população de Las Hurdes e no processo de filmagem em si. O resultado é o álbum de quadrinhos Buñuel en el laberinto de las tortugas, editado originalmente em 2008 pela Editorial Regional Extermeña e reeditado pela Astiberri. A investigação quadrinística de traço estilizado – típico do estilo de quadrinhos europeu – parece, no mínimo, curiosa.

- Uma análise pormenorizada da obra de Buñuel aparece no capítulo "O Surrealismo no Cinema" do mais completo estudo sobre aquele "ismo" contemporâneo publicado no Brasil, o volume de ensaios O Surrealismo, organizado por Jacó Guinsburg e Sheila Leiner (editora Perspectiva).

- Terra sem pão chegou a ser lançado no Brasil, como extra na edição em DVD de Os esquecidos, que infelizmente está esgotada. Contudo, o filme pode ser visto no Youtube.







Alcebiades Diniz Miguel