Escrevi em
As sombras móveis, em 1999: “[…] O cinema mudo vive sua redescoberta, iniciada com as comemorações do centenário, que impulsionou a política mundial de restauração de películas, apoiada pela Unesco, seja para mostras e festivais de cinema, seja para comercialização de vídeos, LDs e DVDs. Com as novas tecnologias e a globalização do mercado, desaparecem as fronteiras entre o cultural e o comercial, e surge, pela primeira vez na História, uma oportunidade real de salvação e difusão da memória visual da humanidade. E assim, parafraseando Abel Gance, todos os clássicos, todos os mitos do cinema, e mesmo todas as cinematografias esperam sua ressurreição luminosa, e os tesouros das cinematecas acumulam-se às portas do mercado para ganhar uma nova vida através da tecnologia digital. O tempo da imagem voltou.”
Quase dez anos depois, Leon Cakoff escreveu: “Pelo terceiro ano consecutivo, impulsionado pelo mercado de DVDs, clássicos do cinema têm sido restaurados para ganhar sessões especiais em Cannes” (
Jornal da Mostra, nº 492, 30ª Mostra, 15 mai. 2007). Nesta edição do festival foi anunciado a 22 de maio o lançamento da World Cinema Foundation (WCF), uma associação de cineastas, sem fins lucrativos, criada a partir de uma idéia de Martin Scorsese, com o objetivo de apoiar financeiramente a preservação, a restauração e a difusão de filmes de países de todo o mundo, em particular do cinema da África, da América Latina, da Ásia e da Europa central.
Integram a iniciativa o cineasta brasileiro Walter Salles, o chinês Wong Kar-Wai, o malinês Souleymanne Cisse, os mexicanos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu, o britânico Stephen Frears, o mauritano Abderrahmane Sissako. Como observou Scorsese, é necessário atuar com a maior rapidez e eficácia para que a memória cinematográfica de cada país não seja perdida: “90% dos filmes rodados antes de 1950 nos Estados Unidos já não existem. As coisas mudaram, mas é impossível recuperar o que está perdido. Falta tenacidade dos cineastas, isso é o que tento despertar aqui”. Cada cineasta deveria trabalhar em seu país para recuperar seu patrimônio nacional e as grandes cinematecas e os festivais do mundo deveriam “adotar” filmes, buscando os fundos necessários para sua restauração e distribuição internacional. A fundação prevê a formação de uma rede formada pelas cinematecas de todo o mundo para apresentar os filmes restaurados antes de sua divulgação em DVD (Scorsese, Walter Salles e Wong Kar-Wai lançam fundação.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 mai. 2007, Ilustrada).
Foram exibidos em Cannes os três primeiros títulos cuja restauração foi apoiada pela associação:
Transes (Marrocos, 1981), de Ahmed El Maanouni, restaurado pela Cineteca di Bologna, e apresentado por Martin Scorsese;
Limite (Brasil, 1931), de Mário Peixoto restaurado pela Cinemateca Brasileira, VideoFilmes, Arquivos Mario Peixoto, com a participação da Arte France, e apresentado por Walter Salles;
A floresta dos enforcados Padurea Spinzuratilor, Romênia, 1964), de Liviu Ciulei, restaurado pelo Arquivo Nacional do Filme da Romênia, e apresentado por Cristi Puiu.
O 60º Festival de Cannes celebra ainda quatro efemérides com filmes cujas cópias foram recentemente restauradas para relançamento em DVD: dois cinqüentenários de clássicos – o de
Canal (
Kanal, Polônia, 1957), de Andrzej Wajda, reapresentado pelo próprio diretor, honrado à época com o Prêmio Especial do Júri de Cannes; e o de
Doze homens e uma sentença (
Twelve Angry Men, EUA, 1957), de Sidney Lumet, com uma homenagem a Henry Fonda por Jane Fonda; e dois centenários de atores: o de John Wayne, com a exibição de
Rio Bravo (idem, EUA, 1959), de Howard Hawks (cópia restaurada pela Warner Bros.); e
Hondo (idem, EUA, 1953), rodado em 3D por John Farrow (cópia restaurada pela Batjac Productions); e o de Laurence Olivier, com uma mostra de suas adaptações de Shakespeare:
Henrique V (Henry V, Inglaterra, 1944),
Hamlet (idem, Inglaterra, 1948) e
Ricardo III (Richard III, Inglaterra, 1955) – em cópias restauradas pela Granada International – precedida pelo curta
Words for Battle (Inglaterra, 1941), de Humphrey Jennings, narrado pelo ator (cópia restaurada pelo British Film Institute).
Além destas mostras, será apresentado um verdadeiro
pot-pourri de filmes em cópias restauradas:
As aventuras do Príncipe Ahmed (
Die Abenteuer des Prinzen Achmed, Alemanha, 1926), de Lotte Reiniger (restauração: Deustches Filmmuseum Frankfurt am Main);
La Bandera (idem, França, 1935), de Julien Duvivier (restauração: CNC - Archives Françaises du Film e SND);
Donne-moi tes yeux (França, 1943), de Sacha Guitry (restauração: Cinémathèque Française e Studio Canal);
Yoyo (França, 1965), de Pierre Etaix (restauração: Fondation Groupama Gan pour le Cinéma);
O vampiro da noite (
Dracula, Inglaterra, 1958), de Terence Fisher (restauração: British Film Institute e Swashbuckler Films);
Bound by Chastity / L’arche de chasteté (Coréia do Sul, 1962), de Shin Sang-Ok (restauração: Korean Film Archives);
Por que Israel (
Pourquoi Israel, França, 1973), de Claude Lanzmann (restauração: Why Not Productions);
Mikey & Nicky (EUA, 1976), de Elaine May (nova cópia: Carlotta Films);
Suspiria (idem, Itália, 1977), de Dario Argento (restauração: Luciano Tovoli e Wild Side Films); Assim, sob a égide da Federação Internacional dos Arquivos do Filme, a salvaguarda do patrimônio cinematográfico torna-se, cada vez mais, o objeto de atenções particulares em numerosos países do mundo. Já o Brasil, cujo Estado tradicionalmente despreza a educação e a cultura, mal desperta para o problema do desaparecimento lento, gradual e seguro de seu patrimônio cinematográfico.
Links:
-
Festival de Cannes online.
Luiz Nazario