Para promover o lançamento do primeiro single de seu mais novo CD – o primeiro desde 2003 – a banda de hip hop britânica Massive Attack convocou o diretor francês Edouard Salier, famoso por seus videoclipes para artistas indie como Air. Segundo o próprio Salier, o Massive Attack teria enviado todas as músicas de seu álbum para que ele escolhesse qualquer uma e montasse um curta animado em cima dela. Curiosamente – ou não –, a escolha do diretor recaiu sobre a "música de trabalho" da banda, batizada "Splitting the Atom", destinada à reprodução perpétua em rádios e na MTV. A letra da música evolui por imagens obscuras, vagamente anti-capitalistas, mas sombrias, que desembocam no falso paradoxo da "última partícula, divisível e invisível". O contraste provocado pelo uso da imagética obscura atraiu Salier, cuja percepção indicou que o leit-motiv central da música era o conflito: animado e inanimado, selvagem e civilizado, preto e branco. Nas palavras do próprio diretor: "O momento fixado da catástrofe. O instante em que o átomo libera a besta, e que o mundo transforma-se em caos vitrificado. Então nos deslocamos para o suave e luminoso desastre de uma humanidade ansiosa. Homem ou fera? A responsabilidade pelo caos ainda está por ser determinada".
No videoclipe, vemos uma cidade construída em moderna plataforma CGI, vitrificada pelo uso dinâmico do preto e do branco e pela eliminação da cor. Há uma batalha na cidade, soldados sem identidade estão em combate. Inicialmente pensamos que se trata de um combate entre os humanóides sem rosto e suas máquinas (carros, helicópteros, tanques, caças), mas logo a perpectiva se abre e vemos que existe uma criatura leonina – cuja textura difere do vítreo que domina a animação, tendendo para a brancura do papel ou da cartolina –, que provoca e é engolfada pelo caos. É nesse momento que surge a única cor dissonante do clipe, o vermelho vivo dos olhos da fera. A abertura ainda mais ampla da perspectiva revela que a própria fera parece ferida de morte, submersa no caos maquínico – nesse momento, surge uma figura diferente, não totalmente vitrificada, mescla de robô e caveira cartunesca, que olha o espectador com seus olhos vermelhos e brilhantes, semelhantes ao da besta moribunda. Contudo, os conflitos que são o foco de Salier possuem curiosa e reveladora ressonância em outra animação, mais antiga: trata-se de Tyger (2006), de Guilherme Marcondes, comentada anteriormente em Mil Olhos.
Há muitas semelhanças entre as duas animações (uma recuperação do plano de fundo – a cidade – na composição do significado, por exemplo) mas o que mais aproxima ambas é o uso metafórico da fera, um imenso animal destrutivo solto na megalópole. Até a espécie dos animais é semelhante: ambos são felinos. É impossível não pensar na possibilidade de Salier ter visto a animação brasileira, realizada quatro anos antes, e a tomada como base de sua leitura da música do Massive Attack – ainda mais se levarmos em consideração o fato de que a produção de curtas de animação, hoje, é totalmente globalizada, com peças dos mais diversos países participando de concursos reais e virtuais espalhados pelo mundo. E o trabalho de Marcondes é poético, denso e marcante, o que lhe garantiu projeção internacional: as apocalípticas imagens da cidade de São Paulo tomada por animais e retransformada em selva valeram à animação exibição concorridíssima no festival Anima Mundi de 2006 e prêmios internacionais. A mescla bem planejada de técnicas (o tigre é um boneco articulado, "animado" pela Cia. Stromboli, pioneira em teatro de animação no Brasil; as belas fotos noturnas de São Paulo; os desenhos expressionistas e caricaturais, com algo de Goeldi, de Samuel Casal; a música instrumental agressiva) cria um tom narrativo e dramático para as poderosas imagens animadas.
Contudo, apesar de suas semelhanças, as duas animações partem de perspectivas bem distintas: a animação Marcondes, criada a partir do poema Tyger de William Blake, busca a destruição da civilização, vista em sua brutalidade mais evidente na grande e desumana cidade, pela fera primitiva, palpitante mas alienada no coração do homem. Embora unilateral, romântico e problemático, trata-se de um movimento libertador – ligado, de forma completa, com a técnica empregada, aparentemente "simples" e "pobre" –, que se afasta da brutalidade organizada e arrogante de uma civilização que se pretende avançada, embora destrua sem pestanejar a natureza externa e interna ao homem. Já Salier toma o partido dessa civilização, aguardando que a tecnologia, forneça alguma saída à destrutividade humana, nem que seja a saída de uma destruição ainda maior. Ao lermos a síntese da animação, percebemos que a referência temática central não estava no tigre blackiano de Marcondes, mas o "tigre de papel" metafórico empregado por Mao-Tse Tung para caracterizar o arsenal atômico ocidental. Mas ele não atribui o "caos" ao tigre de papel, à bomba atômica em si, pois a fera também sucumbe ao caos que produziu. Ele a atribui ao homem-robô “imortal” (pois cadavérico e ambulante) que está “por trás” da fera, por trás da bomba atômica: a imensa fera sucumbe ao caos citadino no qual imagens sem rosto ou identidade, igualmente, sucumbem, mas a figura meio cadáver meio robô, de olhos vermelhos, resta "viva", antes de tudo ser engolfado por uma explosão, aparentemente detonada pela emanação sanguínea dos olhos do andróide cadavérico, no último frame do videoclipe. Seria esse morto-vivo um Ser Extraterrestre? Um símbolo da Morte Eterna? Da Tecnologia? Do Homem Tecnológico? Do Capitalismo "Sem Alma"? Temos aqui uma ambiguidade que motiva o espectador ao salto não à interpretação poética, mas ao irracional. A figuração crítica e poética torna-se espera, banal, por um apocalipse de verdade, que os fetichistas do tecnológico tanto anseiam.
Massive Attack-Splitting the Atom-directed by Edouard Salier from edouard salier on Vimeo.
Alcebiades Diniz Miguel/Luiz Nazario