Um longo caminho foi percorrido desde os primeiros indícios do Holocausto registrados pelo cinegrafista americano Julien Hequembourg Bryan (1899-1974) que, após acompanhar com suas câmaras (fotográfica e cinematográfica) a vida cotidiana na Alemanha nazista de 1935 a 1938, encontrando-se em Varsóvia durante a invasão alemã, em setembro de 1939, decidiu ali permanecer para documentar o cerco que marcou o início da Segunda Guerra Mundial, legando ao mundo uma extraordinária série de documentos visuais (a Coleção Julien Bryan foi adquirida pelo United States Holocaust Memorial Museum do Sam Bryan and the International Film Foundation, Inc. em 2003).
Os primeiros relatos sobre a real dimensão do Holocausto escaparam dos campos de morte pela via oral, através dos testemunhos dos sobreviventes que haviam conseguido deles fugir e que revelaram a existência de uma nova indústria no mundo, uma indústria da morte, com câmaras de gás e crematórios funcionando a todo vapor para exterminar judeus em massa. Mas na ausência de “provas concretas” do genocídio, o anti-semitismo atávico falava mais alto, fazendo com que 0s relatos dos sobreviventes fossem considerados exagerados, fantasiosos, paranóicos. Mesmo comunidades judaicas de outros continentes não lhes davam crédito, não podendo conceber que tais crimes de massa estivessem a acontecer na Europa em pleno século XX.
A imprensa americana praticamente ignorou os rumores que circulavam sobre o extermínio dos judeus europeus, com exceção de duas notas conhecidas: em junho de 1942, o
New York Times consagrou algumas linhas ao genocídio em marcha e a revista
The Nation publicou, a 19 de dezembro de 1942, um editorial intitulado “The Murder of a People”, relatando o massacre de dois milhões de judeus da Polônia com novas técnicas de matança com gás (Cf. TRAVERSO, Enzo. “La responsabilité des intellectuels. Dwight MacDonald et Jean-Paul Sartre”. In: TRAVERSO, Enzo.
L’Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels. Paris: Les Éditions du Cerf, 1997, p. 189-218). Ao lerem essas notas, os intelectuais americanos, judeus e não judeus, imaginaram que se tratasse de propaganda aliada para justificar o bombardeamento sistemático das cidades alemãs. Nenhuma reflexão sobre a singularidade do genocídio dos judeus – e também dos ciganos – foi então elaborada, nenhuma ação dos governos aliados foi então tomada para tentar impedir esse crime de massa diferenciado.
Em 1943, o mensageiro clandestino polonês Jan Karski informou ao Presidente Franklin D. Roosevelt dos crimes de massa que estavam ocorrendo na Polônia, e que lhe haviam sido revelados pelas lideranças judaicas do Gueto de Varsóvia, mas o governo americano não tomou nenhuma medida a respeito. A 26 de junho de 1944 os Aliados obtiveram um primeiro reconhecimento visual de Auschwitz, feito por pilotos americanos:
Na metade de baixo do quadro, pode-se ver Auschwitz I; e na metade de cima, Auschwitz II ou Auschwitz-Birkenau, acrescentado como campo de extermínio em 1942 (um terceiro campo, Auschwitz III, ou Auschwitz-Monowitz, seria construído no fim de 1944 para providenciar trabalho barato às indústrias de guerra alemãs). Esta evidência visual não modificou, contudo, a estratégia dos exércitos aliados: os pedidos das organizações judaicas para que se bombardeassem os trilhos que levavam aos campos de extermínio continuaram a ser ignorados.
A 23 de agosto de 1944, a existência de câmaras de gás e crematórios em Auschwitz foi comprovada numa impressionante fotografia obtida por acaso por um Mosquito da Força Aérea Sul-Africana, baseado no Mediterrâneo, cuja missão era registrar a planta da IG Farben nas proximidades de Monowitz. Mas após o registro previsto, as câmaras continuaram a registrar enquanto o avião sobrevoava Auschwitz-Birkenau, fixando para sempre na emulsão do filme a maior indústria da morte do Holocausto em pleno funcionamento. A imagem inclui as densas nuvens de fumaça saindo da chaminé do Crematorium 5 no momento em que eram assassinados centenas de milhares de judeus húngaros, além das valas comuns nas proximidades. A imagem possui tal grau de precisão que é possível ver duas colunas de prisioneiros alinhados à espera da chamada. É importante destacar que foi Chris Going, da UK Air Photo Libraries, quem ajudou os arquivistas do Museu Yad Vashem a identificar as imagens aéreas:
Na mesma imagem com legendas em inglês, a Inteligência Aliada pode já então identificar: trem de transporte nos trilhos, grupos de prisioneiros, câmara de gás e crematório:
Embora a divulgação recente dessas imagens na Internet tenha dado a impressão de seu “ineditismo”, elas eram conhecidas dos historiadores, citadas, por exemplo, por Walter Laqueur no seu livro
The Terrible Secret: an Investigation into the Suppression of Information about Hitler’s ‘Final Solution’ (
O Terrível Segredo: a verdade sobre a manipulação de informações na ‘Solução Final’ de Hitler, 1981). E o documentarista Harun Farocki já havia debatido o tema de sua “invisibilidade” pelos governos aliados há quase vinte anos em seu filme
Fotos do mundo e inscrições da guerra (
Bilder der Welt und Inschrift des Krieges, Alemanha, 1989). Por que os Aliados ignoraram essas imagens e não bombardearam os trilhos que levavam os trens carregados de judeus aos campos ainda no fim de guerra, evitando que centenas de milhares deles fossem mortos nas câmaras de gás?
Um argumento levantado por alguns historiadores, e que deve ser levado em conta, é que, no caos da guerra, os pilotos espiões que tiravam as fotos, rapidamente e sob o risco de suas vidas, não tinham condições de processar outras informações senão aquelas designadas em suas missões; sem tempo de refletir sobre o que poderia representar sinais de uma indústria de morte cujos mecanismos desconheciam, eles ignoraram estas imagens que só revelariam seu verdadeiro conteúdo depois que a pesquisa e a reflexão históricas puderam identificar com exatidão o que cada traço ali significava.
George Bush foi, curiosamente, o primeiro presidente americano a declarar publicamente que os EUA deveriam ter bombardeado Auschwitz ao tomar conhecimento de seus fins. Nos seus diários postumamente publicados o historiador americano Arthur Schlesinger Jr. revela que se opôs à idéia de um bombardeamento a Auschwitz alegando que a diferença que isso faria em relação à matança de judeus pelos alemães seria a de que o bombardeio teria matado os judeus mais rapidamente. O David S. Wyman Institute contra-argumentou que o bombardeio aliado poderia ou não resultar em casualidades judaicas, mas não em números remotamente próximos aos da matança nazista; e bombardear as linhas ferroviárias que levavam ao campo poderia resultar em pouca ou nenhuma casualidade judaica, desde que os alvos fossem os trilhos e não os trens. Em 1944, os Aliados bombardearam fábricas de óleo a menos de 8 km de Auschwitz: se o campo tivesse sido visado ter-se-ia evitado que milhares de judeus húngaros fossem mortos nas câmaras de gás.
Em
Churchill and the Jews: A Lifelong Friendship, o historiador inglês Martin Gilbert parece também ter exagerado o apoio que Winston Churchill teria dado aos judeus europeus durante o Holocausto: segundo David Wyman, autor de
The Abandonment of the Jews: America and the Holocaust, 1941-1945, Churchill recusava lidar pessoalmente com as notícias sobre o Holocausto ou com os apelos para a salvação dos judeus, incumbindo o Foreign Office de fazê-lo. A resposta dos Aliados ao Holocausto não foi, enfim, compassiva ou solidária, mas
“apática” .
Ainda antes de Primo Levi, químico que a experiência do inferno em Auschwitz transformou em escritor
depois da guerra, quando publicou
É isso um homem, foi o psicólogo vienense Bruno Bettelheim quem escreveu o primeiro relato detalhado sobre um campo nazista (Buchenwald), do qual escapara em 1938. Diversas editoras recusaram publicar o relato, que só foi editado em 1943, por Gordon Allport, e republicado em 1944 por Dwight MacDonald, sendo mais tarde retomado sob o título de
O coração informado. Foi graças ao pioneiro relato de Bettelheim que o significado mais amplo dos campos de concentração pôde ser divulgado
ainda durante a guerra.
Como outros intelectuais, Dwight MacDonald havia recebido com ceticismo as primeiras notícias do Holocausto em 1942. Somente após o contato com Bruno Bettelheim ele escreveu no outono de 1944 suas próprias reflexões lúcidas e precoces sobre a singularidade do Holocausto, no ensaio “A responsabilidade dos povos”, publicado em
Politics em março de 1945 (TRAVERSO,
op. cit. , p. 189-218). As acuradas reflexões de Dwight MacDonald são ainda mais notáveis pelo fato de que as imagens do reconhecimento aéreo dos campos não haviam sido divulgadas ao público, que só teve acesso visual ao universo concentracionário no pós-guerra, com os chamados “filmes de atrocidades”, que registraram a abertura dos campos.
Por décadas, os documentos visuais do Holocausto, conservados em diversos arquivos históricos e cinematográficos, tinham, pela fragilidade de seu suporte material, um acesso restrito a historiadores e pesquisadores do cinema, além de cineastas e documentaristas, que os estudavam e utilizavam em seus próprios filmes. Hoje, estes documentos visuais são largamente difundidos graças às novas tecnologias, através do DVD e da Internet.
Em suma, informações esparsas sobre o universo concentracionário circulavam no mundo bem antes da abertura dos campos; imagens aéreas foram acidentalmente registradas perto do fim da guerra; mas seriam necessários muitos anos de pesquisa, testemunhos, reflexão, para que os conceitos e as imagens do “terrível segredo” do ‘Terceiro Reich’, suspeitas de invenções de imaginações delirantes; ou entrevistas como meros traços distantes – como o crime registrado por acidente pelo fotógrafo de
Depois daquele beijo (
Blowup, 1966), de Michelangelo Antonioni, a partir do conto de Julio Cortázar – se integrassem num inteiro quebra-cabeça que hoje chamamos de Holocausto, em toda sua inegável nitidez e vívido horror.
Nota: O acervo de cinco milhões de fotos tiradas com câmeras de alta resolução pelos aviões da Força Aérea do Reino Unido (Royal Air Force - RAF) durante a Segunda Guerra Mundial, e que serviam para os comandantes militares elaborarem suas estratégias para vencer as forças alemãs, foi doado em 1962 à Universidade de Keele, e ali conservado em 40 mil caixas. Entre seus poucos usuários estavam as agências de desativação de explosivos, que utilizaram as fotos para buscar bombas que não chegaram a explodir; e Steven Spielberg, que o visitou durante a produção da série de TV
Band of Brothers. O acervo foi digitalizado para criar o “Arquivo de Reconhecimento Aéreo” (British Aerial Reconnaissance Archives ou Third Holocaust Memorial Day Keele’s Air Photo Archive - T.A.R.A.). Cf.
Vivid World War II Spy Photos Stir Memories,
Debate Europe, 20 jan. 2004.
Luiz Nazario