I
Em São Paulo, durante anos freqüentei a Biblioteca Jenny Klabin do Museu Lasar Segall, minha biblioteca ideal por diversos motivos: a simpatia das bibliotecárias; a localização do museu próxima à minha casa; a atmosfera acolhedora de uma casa-museu particular; a presença de um bar para refrigerar as pausas no calor ou esquentá-las no inverno; as programações de cinema e as exposições de artes plásticas, que combinavam perfeitamente com uma tarde de leitura; a excelente coleção especializada em cinema, teatro e fotografia.
Comecei a atacar este acervo como o personagem do Autodidata, em
A Náusea, de Sartre: um dos meus objetivos de então era ler todas as grandes peças teatrais; decidi que um bom método era seguir a ordem alfabética dos grandes autores: comecei com Arrabal, Artaud, Beckett, Brecht, Camus, Capek, Eliot, Genet, chegando até Ibsen e Ionesco, pulando alguns autores enjoativos ou embaralhando um pouco a ordem que me impusera quando me caíam sob os olhos peças que me arrebatavam desde a primeira página e que eu não conseguia parar de ler; como o drama metafísico dos
Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello ou o monólogo para duas atrizes
A mais forte, de Strindberg.
Foi nessa Biblioteca que descobri o teatro do absurdo, que marcou minha adolescência com sua filosofia niilista, da qual só me curei, mais tarde, com a absorção de altas doses de existencialismo. E, passada a mania da ordem alfabética, devorei toda a obra teatral de Tennessee Williams, Nelson Rodrigues e Jean-Paul Sartre. E apenas ali, na Biblioteca Jenny Klabin, encontrei a única peça que Simone de Beauvoir escreveu,
Les bouches inutiles (
As bocas inúteis), levada ao palco, na época, por Jean Genet. Aliás, uma bela peça, ao contrário do que diziam os críticos... Ler teatro é delicioso, porque os textos são limitados ao tempo de palco e os diálogos espaçados podem ser sorvidos com maior rapidez que a mistura de diálogos e descrições nos romances.
Havia tardes sufocantes na minha juventude, especialmente nos fins de semana, quando São Paulo parecia-me a metrópole mais triste e feia do mundo. Nestas tardes de tédio espesso, sequer interrompido por um telefonema amigo ou pelo lançamento de um filme, eu me refugiava na Biblioteca Jenny Klabin para folhear as mais novas revistas de cinema, sonhando com os filmes “malditos” que jamais veria, com as retrospectivas tentadoras que inundavam as cinematecas americanas e européias. Espiava também todas as revistas de fotografia, até que as imagens de Goedlen, Lartigue, Adams, Cartier-Bresson, Cecil Beaton, Richard Avedon, Diana Arbus ou Anne Leibovicz se me tornaram familiares.
Depois que meu primeiro livro,
O cinema industrial americano, escrito de memória, sem consultar nenhum livro – causa de muitos erros – fez certo sucesso, a Editora Brasiliense encomendou-me uma pequena biografia de Pier Paolo Pasolini para a coleção Encanto Radical. De Pasolini, havia visto apenas os filmes: ignorava sua literatura. Foi na Biblioteca Jenny Klabin que li então tudo o que existia de ou sobre Pasolini - dezenas de livros e revistas, em italiano, francês, inglês, espanhol. Como muitas coleções não estavam completas, gastei, importando a literatura de Pasolini, muito mais do que recebi em “direitos autorais”. Muitas vezes, no Brasil, um autor se pergunta por que continua a escrever. Para o bem ou para o mal, ele não pode deixar de fazê-lo: um escritor está condenado a escrever. No final, sempre sobra alguma coisa: conheci fãs de Pasolini que se tornaram meus amigos; e fãs de Pasolini que se tornaram meus inimigos; fãs que me revelaram suas vidas pasolinianas e fãs que se decepcionaram com minha vida não-pasoliniana... O livro esgotou três edições sucessivas graças a uma resenha positiva na Veja e fui convidado por Caio Túlio Costa a integrar a equipe de críticos da
Folha de S. Paulo.
A Biblioteca Jenny Klabin continuou a ser minha fonte durante a redação de minhas críticas: primeiro, para a
Folha de S. Paulo; depois, para o
Estado de S. Paulo e
Diário do Grande ABC; logo para as revistas
Set,
A-Z,
HV,
Elle e
Atlante; finalmente, para a
Isto É, onde assinei por três anos a página de cinema. Eu passava no Segall tardes inteiras folheando léxicos, enciclopédias e histórias do cinema à procura de uma data, um título, um nome de ator ou diretor. A geração IMDB não faz idéia da dificuldade que era escrever sobre cinema antes dos Bancos de Dados da Internet... Eu cruzava, muitas vezes, ali na Biblioteca, com outros críticos em apuros, especialmente com a saudosa Pola Vartuck.
Lembro-me das duras tarefas de que eu encarregava as dedicadas bibliotecárias, que vinham sempre em meu auxílio. Elas consistiam, por exemplo, em encontrar uma boa fotografia do filme
A Deusa Mothra para ilustrar um ensaio que eu estava escrevendo sobre Inoshiro Honda. E quanto mais “impossíveis” essas missões, mais encarniçadamente as empreendíamos. Procurávamos uma agulha num palheiro, mas as buscas absurdas eram sempre coroadas de êxito, pois havia algo de mágico na Biblioteca Jenny Klabin: apesar de todas as falhas nas suas coleções, sempre encontrávamos ali o que procurávamos, ou pelo menos o rastro do que procurávamos. Creio que isso se explica logicamente pelo fato de que a maioria dos livros não passa de um eco de outros livros, e poucos são os livros realmente importantes e básicos – as fontes.
Uma boa biblioteca é aquela que possui as fontes. A Biblioteca Jenny Klabin era a melhor no Brasil (e creio que na América Latina) no campo do cinema, do teatro e da fotografia porque seu núcleo fora solidamente formado por um crítico brilhante e um colecionador apaixonado: Anathol Rosenfeld. O que decide da qualidade de uma biblioteca é essa base de inteligência e paixão, que consegue reunir o melhor do que se editou em determinada época. A Biblioteca Jenny Klabin não satisfazia mais o pesquisador contemporâneo, obcecado pela totalidade do conhecimento produzido. A distância entre seu núcleo sólido e as aquisições recentes alargou-se, ao longo dos anos, com a falta de verba, por um lado, e a incontrolável expansão editorial, por outro. Os freqüentadores do Museu Segall às vezes diminuíam essa distância com doações (doei à Biblioteca, por exemplo, todos os meus livros sobre o cinema russo quando decidi especializar-me em cinema alemão; e os textos que o grande animador Norman MacLaren certa vez me enviou, e que eram escritos numa linguagem técnica acima da minha compreensão). Mas não era suficiente.
Agora se anuncia, contudo, não o aumento das verbas para salvar a Biblioteca Jenny Klabin, mas a sua transferência do Museu Lasar Segall para a FUNARTE. O professor aposentado da USP Jorge Schwartz, o novo diretor do Museu Lasar Segall, pretende, adotando uma linguagem de empreiteiro, transferir “cerca de 500 metros cúbicos de materiais da biblioteca” para, com as sobras do “material”, montar no Museu uma “biblioteca temática” [Cf. MARTÍ, Silas. Diretor do Lasar Segall quer aumentar o espaço.
Folha de S. Paulo, 8 set. 2008]. Claro que o desmembramento das coleções para a criação de uma “biblioteca temática” (limitada ao modernismo? Limitada ao expressionismo? Limitada à obra de Segall?) acarretará a perda do belo núcleo inicial que, como toda paixão, só sobrevive de constantes oferendas, oferendas que renovam a eterna esperança da impossível completude. O que se anuncia, portanto, sem qualquer protesto da intelectualidade acadêmica, sem qualquer mobilização da classe artística, é a morte de uma fonte de cultura, a morte de uma bela biblioteca...
Luiz Nazario
II
Uma das conseqüências mais terríveis da atual entronização das tecnologias digitais é a noção de que o conhecimento precisa necessariamente de um “alvo” definido, a ser atingido com a velocidade e a precisão das bombas guiadas a laser. Se a Internet fornece, através do trabalho coordenado, de colméia, de uma multidão de anônimos que incansavelmente digitalizam textos para colocá-los, não raras vezes à revelia do autor, em seus repositórios “públicos” e “gratuitos”, efetua-se uma forma de difusão do conhecimento com base na rapina e na fúria do
copy and paste. A tradição da biblioteca é outra, aquela que Jorge Luis Borges sintetizou em vários contos: trata-se de um espaço no qual a busca por um livro, ou assunto, específico conduz a inesperadas
encruzilhadas, descobertas únicas que nem sempre estavam nos planos, mas que acabem por constituir uma maravilha nova e até mais importante que o motivo inicial da busca. Assim, se busco uma referência fotográfica, acabo por encontrar no meio do caminho uma reflexão estética que enriquece, inadvertidamente, minha busca. Se procuro uma análise sobre cinema, encontro uma peça teatral importante, que amplia a paisagem que originalmente criara. A biblioteca ideal, nesse sentido, ofereceria através de um acervo rico – não disperso, não estensivo, mas sugestivo e amplo dentro de um determinado universo – possibilidades de inusitadas descobertas ou combinações a seus leitores. E a verdade é que os sites da Internet que conseguem de uma forma ou de outra se aproximar desse ideal da biblioteca – como é o caso do blog
BibliOdyssey – acabam por se transformar em espaços únicos dentro da imensa maçaroca de repetição e becos sem saída via rede que vemos hoje.
Tentar fazer de uma biblioteca uma
ferramenta no sentido digital do termo, “focada” e “especializada”, é de certa forma destruí-la, anulando aquela essência especial. Que essa proposta venha de administradores e
Think Tanks formados pela cultura digital que – como Nicholas Negroponte – desprezem o universo dos livros e acalentem secretos desejos de destruí-lo é bastante compreensível. Mas que esse desejo, vazado na novilíngua administrativa, seja expresso por um professor aposentado da USP – Jorge Schwartz –, que pretende desmembrar sem piedade a Biblioteca Jenny Klabin com finalidades de “tematização” do conteúdo, chega a ser como uma cena de Ionesco ou de outro dramaturgo do absurdo. A melancólica e mortal mutilação que tal processo causará à biblioteca demonstra como a destruição de uma biblioteca, muitas vezes, prescinde de um elemento mais dramático: o fogo.
Alcebiades Diniz Miguel
III
São Paulo, 11 de setembro de 2008
Caro Luiz Nazario,
A sua reação à transferência da Biblioteca do Museu Lasar Segall é a mesma que eu tive quando, em 14 de junho de 2006, fui chamado, juntamente com João Roberto Faria, a opinar sobre a questão. A minha desaprovação à idéia traduziu-se num parecer, subscrito por mim e pelo meu colega, no qual nos pronunciamos a favor da preservação do valioso acervo no local em que se encontra, ou nas proximidades (uma solução aventada pela então diretora da instituição), dada a importância desta fonte de informação para os estudos de teatro, cinema e televisão nas universidades e escolas paulistanas e, neste particular, no âmbito cultural brasileiro. Isto, porém, não significava que não se devesse levar em conta os motivos que induziram a diretoria do Museu a desejar o alargamento de seu espaço de exposições. De fato, a amplitude da biblioteca afeta drasticamente a área das mostras de artes plásticas, que são a própria razão de ser da atividade deste centro cultural. De todo modo, a solução encontrada não me parece, à primeira vista, a mais feliz, considerando a experiência que todos nós temos com as entidades oficiais, em geral altamente burocratizadas e sempre à mingua em termos orçamentários. Assim sendo, como você pode ver, a sua preocupação também era a nossa na época e continua a ser a minha, sem dúvida.
Cordialmente
J. Guinsburg