Em nossa última coluna de 2006 gostaríamos de destacar o lançamento em DVD do filme Os olhos sem rosto (Les Yeux sans Visage, 1960), lançado pela Magnus Opus, redescobrindo um filme desprezado pelos historiadores – Georges Sadoul nem o menciona em sua História do cinema – mas que hoje revela espantosa atualidade. A edição segue o mesmo padrão do DVD lançado em outubro de 2004 pela Criterion Collection, no formato Widescreen Anamórfico (1.66:1). Como sempre, a Magnus Opus não se preocupou em apresentar o produto como ele o merecia, ou seja: manteve no DVD o design de capa dos posteres originais franceses e americanos, que são sensacionalistas, no estilo das capas dos romances policiais dos anos 1950, com cores berrantes e redundância da imagem da mulher de olhos sem rosto, em close e corpo inteiro, fugindo ao estilo do filme; bem diferente é o novo design criado pela empresa americana, fiel ao monocromatismo da obra e sua associação com o surrealismo de Jean Cocteau e Luis Buñuel e com o expressionismo tardio dos filmes noir de Fritz Lang. Nas reproduções abaixo, podemos ver o cartaz original de lançamento do filme na França e as duas capas, da Magnus e da Criterion:
O DVD Criterion Collection inclui o curta-metragem O sangue das bestas (Le Sang des Bêtes, 1949), de Georges Franju, sobre os matadouros de Paris; uma galeria de fotos de produção e material promocional; duas entrevistas de arquivo com o cineasta; dois ensaios críticos do novelista Patrick McGrath e do escritor e historiador do cinema David Kalat; dois trailers originais. O DVD Magnus Opus inclui os mesmos materiais, com exceção dos dois ensaios críticos, exclusivos da edição americana; procura-se suprir essa falta com textos traduzidos de ensaios de Georges Franju, mas as transcrições estão lamentavelmente truncadas. Felizmente, a qualidade das cópias e da prensagem foi preservada.
Os olhos sem rosto é um filme fantástico adaptado do romance de Jean Redon pela dupla de consagrados escritores policiais Pierre Boileau e Thomas Narcejac, com a colaboração de Claude Sautet. O veterano ator Pierre Brasseur vive o Dr. Génessier, cirurgião respeitado por seus trabalhos de heteroplastia que experimenta em cães transplantar órgãos vivos como forma de prolongar a juventude. Mas ele também possui uma atividade clandestina, para a qual conta com uma ex-paciente, a estrangeira Louise (Alida Valli), da qual recuperou o rosto, parcialmente desfigurado num acidente; por gratidão, ela se transformou numa enfermeira de fidelidade canina. Na enorme villa guardada por dezenas de cães, o médico mantém sua própria filha prisioneira: dada como morta num acidente, quando o carro que o médico dirigia a toda capotou, Christiane (Edith Scob) teve o rosto queimado; afastada do contato humano e dos espelhos, retirados de todos os cômodos da villa, usando uma fina máscara branca moldada em seu rosto com buracos para os olhos intactos, a jovem vaga como um fantasma pelos corredores, arrastando uma camisola que lhe serve de armadura, sonhando com o suicídio. É para dar um novo rosto à filha única que infelicitou que o culpado doutor mergulha em operações clandestinas. Confiando cegamente no Dr. Génessier, Louise vai a Paris à cata de belas jovens para levá-las à isolada villa. Ali as jovens são dopadas para terem a pele dos rostos retirada pelo doutor em transplantes que resultam, cada vez, num novo fracasso...
Lindamente fotografado pelo veterano Eugen Schufftan, que criou os grandes efeitos especiais com espelhos de Metropolis (1927), de Fritz Lang – técnica que ficou conhecida em Hollywood como “efeito Schufftan” –, Os olhos sem rosto também evoca em suas seqüências iniciais as seqüências finais de O testamento de Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, 1932), daquele mesmo diretor austríaco: na estrada escura, vazia e sinistra, um automóvel em alta velocidade deixa para trás as árvores que refulgem como fantasmáticas manchas brancas – uma homenagem de Schufftan ao colega Fritz Arno Wagner. O próprio personagem do cirurgião é mabusiano em sua dupla personalidade: de dia, no hospital, exerce suas atividades de médico dedicado e respeitado pela sociedade; à noite, em sua villa, esfola e assassina desavisadas jovens seqüestradas. A própria estultice da polícia, ao enviar uma garota para a mansão do doutor, sem saber o que ele faz no refúgio secreto, tem um quê dos filmes noir do cineasta a quem Franju dedicou o ensaio Le style Fritz Lang. Ao mesmo tempo, seu filme remete ao surrealismo francês: a violência de O cão andaluz, de Luis Buñuel, na cena da pele do rosto da jovem arrancada a fórceps; o caminhar fantasmático dos personagens de A bela e a fera, de Jean Cocteau, nas cenas em que Christiane vaga pela villa, encarnando ora a bela, ora a fera, heroína e mostro ao mesmo tempo.
Com uma brilhante trilha sonora assinada por Maurice Jarre, com sons de cravo em acordes de sinistro contentamento, desde então muito imitados em outros filmes de horror, Os olhos sem face não chega a ser um clássico do gênero; dois momentos fracos o diminuem: o primeiro, quando Christine atira-se da janela do último andar da villa, parecendo morta, os olhos fixamente abertos, para em seguida reaparecer bem viva, sem fraturas, ou explicação; o segundo, no final, quando, num arroubo de surrealismo demagógico, as pombas são libertadas de sua gaiola e os cães de suas jaulas.
A libertação dos animais é um tema caro ao surrealismo, e corresponde, em sua simbologia fatalista, ao advento da revolução segundo as normas do materialismo dialético. O tema está presente em toda a obra de Buñuel, desde as formigas e gafanhotos de O cão andaluz (Le Chien Andalou, 1929) e os escorpiões de A idade do ouro (L’âge d’or, 1931) passando pelo urso de O anjo exterminador (El ángel exterminador, 1962), até os animais que fogem do zoológico no final de O fantasma da liberdade (Le Fantôme de la Liberté, 1974). Em Os olhos sem rosto, os animais simbólicos são cães e pombas; os cães simbolizam os oprimidos que se vingam do opressor; as pombas, a paz que a heroína finalmente encontra não sucumbindo ao desespero, nem recuperando seu belo rosto, mas libertando os animais que matam ato contínuo quem os mantinha prisioneiros.
Essa libertação final é ambígua como a própria Christiane. Se o médico e sua assistente assassinam sem escrúpulos em nome da ciência, a jovem sem rosto tem interesses românticos frustrados, hesitando o tempo todo entre um desejo egoísta pela recuperação do rosto (e do namorado) e a piedade altruísta para com as vítimas imoladas em seu duvidoso benefício. Somente no final ela decide salvar a nova vitima. Christiane é bela e fera a um só tempo, e por isso sua psicologia “complexa” não comove: ela mata a enfermeira espetando (quase por inveja) um bisturi no seu pescoço (local da cicatriz da operação bem sucedida que tornou a enfermeira novamente bela), mas ao pai reserva uma morte indireta: “inocente” e “pacifista”, liberta os cães que ele mantinha presos, e que vão, naturalmente, estraçalhá-lo; este assassinato adquire o aspecto de uma “libertação dos oprimidos”, com pombas a revoar à volta da assassina.
O que permanece instigante em Os olhos sem rosto são as seqüências em que Alida Valli sai à caça de garotas, perseguindo-as da mesma maneira subreptícia, eroticamente ambígua, que será adotada pelo colecionador de borboletas Terence Stamp frente à jovem Samantha Eggar – primeira de uma série – em O colecionador (The Collector, 1965), de William Wyler.
A estranha idéia de um transplante de rosto, como se fosse possível transplantar a beleza de uma pessoa para outra, e que parecia a mais pura ficção em 1960 e até recentemente, quando o thriller fantástico A outra face (Face/Off, 1997), de John Woo, recuperou o tema, tornou-se realidade em novembro de 2005. Cirurgiões franceses realizaram o primeiro transplante parcial de rosto numa mulher de 38 anos que teve a face desfigurada depois de atacada por um cachorro: ela ganhou novo nariz, novo queixo e novos lábios. O transplante foi efetuado a partir da doação de uma mulher com morte cerebral encefálica, após autorização prévia da família, por especialistas de dois hospitais em Amiens sob a liderança dos doutores Jean-Michel Dubernard e Bernard Devauchelle. Para evitar o risco de rejeição, a paciente foi submetida a forte tratamento imunológico e recebeu infiltrações de células da medula óssea da doadora, sendo ainda informada de todos os riscos que enfrentava por tratar-se de intervenção pioneira, inclusive da possibilidade de desenvolver câncer. Este primeiro transplante parcial de rosto criou esperanças para pessoas desfiguradas por acidentes e queimaduras, mas também reacendeu antigas e nunca resolvidas questões éticas.
Uma defesa do transplante experimental na cobaia humana encontra-se no artigo “Um rosto, obra da mão”, de François Delaporte, Professor de Filosofia na Université de Picardie Jules Verne, publicado a 1º de março de 2006 no Le Monde Diplomatique, on line em http://diplo.uol.com.br/2006-03,a1283. É sintomático que ele defenda a operação arriscada pelos cirurgiões contra as dúvidas colocadas pelos que chama de “éticos” (sempre assim, entre aspas), afirmando de modo decididamente nazista: “Sabemos que vários jornais evocaram o suicídio da doadora e a tentativa de suicídio da receptora. Mesmo se essas informações fossem verdadeiras, isso não constituiria uma objeção. Muito pelo contrário. O suicídio bem-sucedido da primeira e a tentativa de suicídio da outra desencadearam imprevistos. Por um lado, aos olhos de sua família, o suicídio da doadora torna-se uma morte extremamente útil, graças às doações de órgãos... Esse transplante do rosto..., pondo um fim aos fantasmas, incentiva as doações de órgãos. Hoje, as famílias dizem espontaneamente: Pegue também o rosto” (grifos meus). No visionário filme de Georges Franju, as ações friamente conduzidas pela enfermeira Louise e pelo Dr. Génessier remetiam às “experiências” dos médicos nazistas com cobaias humanas, que historiadores revisionistas, seduzidos pelo mal absoluto, consideram como tendo feito progredir a ciência... Este subtema de Os olhos sem rosto já estava presente em O sangue das bestas.
Realizado apenas cinco anos após a liquidação dos campos de extermínio, O sangue das bestas é um documentário “poético” e repugnante sobre os abatedouros de Paris. Ao mesmo tempo, ele pode ser percebido como uma metáfora do Holocausto, mas uma metáfora insultante, dificilmente sustentável. Muito freqüentemente aquele genocídio cometido pelo Estado alemão foi apresentado como um abatedouro gigantesco, para o qual os judeus “deixaram-se conduzir como carneiros”. A metáfora retirava do evento toda sua complexidade, reduzindo a engrenagem do Holocausto ao massacre de um povo covarde, passivo, servil, incapaz de resistir; o Levante do Gueto de Varsóvia contradiz o mito, mas este é apenas o evento mais espetacular e macroscópico da resistência diária e coletiva de uma minoria perseguida em meio a populações inteiras que, com exceção das minorias politizadas, permaneceram covardes, passivas, servis e incapazes de resistir aos decretos e às ações nazistas.
Mais do que através da metáfora do abate, é por uma invisível analogia mental que se opera, em O sangue das bestas, a associação entre a realidade do abatedouro e a dos campos de extermínio. Os trens que conduzem as reses “inconscientes de seu destino”; a frieza dos açougueiros, cujos nomes são enunciados; a descrição minuciosa de seus métodos de abate; o registro das mutilações, do sangue a borbotar das feridas, do esfolamento das carcaças, do corte das patas, das decapitações, etc. – tudo evoca um massacre organizado (tal como as operações experimentais do Dr. Génessier). O filme começa de maneira singela, com registros poéticos, de evocação surrealista, com objetos espalhados num mercado de pulgas a céu aberto, para pouco a pouco mergulhar nas imagens tenebrosas da carnificina dos animais.
O cinema de propaganda sempre recorreu ao abate como uma metáfora política a serviço de algum movimento extremista ou de algum regime revolucionário. O primeiro cineasta a recorrer a essa metáfora foi Sergei Eisenstein, em A greve (Stachkam, 1924): nas imagens-choque de bois abatidos, rasgados a faca, editadas entre cenas de fuzilamentos em massa, ele fazia a ligação entre o abate das reses nos açougues e o massacre dos operários pela polícia czarista. Após essa metáfora de fundo comunista, uma metáfora semelhante foi oferecida pelo nazismo em O eterno judeu (Der Ewige Jude, 1940), de Fritz Hippler, produzido com gosto por Joseph Goebbels: após chocantes cenas de vacas agonizando com os pescoços rasgados a facão por açougueiros judeus, o público respirava aliviado com o anúncio de um decreto do Führer proibindo a vivisseção de animais. Sabemos hoje que a conseqüência direta desse pioneiro decreto ecológico foi a permissão da vivisseção de judeus, tornados cobaias humanas pelos médicos nazistas nos campos de morte.
Mais tarde, o Cinema Novo também recorreu à metáfora do abatedouro: no final de Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, o povo, após a revolta contra soldados repressores, se engalfinhava faminto, disputando os pedaços da carne de um boi abatido e esquartejado no sertão nordestino. Finalmente, reencontramos a metáfora política do abate na parábola cinematográfica sobre a guerra do Vietnã realizada por Francis Ford Coppola: no momento mais forte de Apocalypse Now (1979) que, ao contrário do que imaginam os críticos, justifica a guerra e prega como única solução da mesma o lançamento de uma bomba atômica no Vietnã, um boi é abatido e mutilado numa cerimônia primitiva realizada no “coração das trevas”.
Nesses filmes extremistas, a metáfora do abate remete à repressão policial (de um Estado a subverter) ou política (dos “judeus”, dos “vietcongs”), como impacto para mobilizar as consciências assim abaladas na direção da “revolução das massas”. Aqueles que abatem serão abatidos, e os animais torturados (“as massas”) serão libertados dos opressores. Há, evidentemente, algo de totalitário nestas metáforas visuais do abatedouro. Mas O sangue das bestas percorre o caminho inverso da metáfora política. Aí, as imagens do abate não aludem aparentemente a nada além delas mesmas, não há edição de cenas evocativas de um universo diferente ao qual o abate se relacionaria; trata-se de um mero documentário sobre abatedouros. Contudo, na escolha deste tema para um documentário preexiste o desejo de abalar as consciências. E além desse desejo, por mais que o cineasta procure manter a narrativa num tom neutro, as imagens cada vez mais atrozes do martírio dos animais remetem, ainda que involuntariamente, aos campos de extermínio e seus horrores revelados poucos anos antes nos “filmes de atrocidades”.
O sangue das bestas não chega a ser um filme de protesto levantando a bandeira do movimento vegetariano contra os abates de cavalos, bois e carneiros, bandeira que retorna com nova roupagem, no seio dos movimentos ecológicos - e lembremos que Hitler era vegetariano. Um recente projeto que proibia a vivisseção de animais, de autoria do vereador e ator Cláudio Cavalcanti, foi vetado no Rio de Janeiro pelo Prefeito César Maia, como inconstitucional; mas inspirou o deputado estadual Palmiro Menucci a tentar, em São Paulo, a proibição do uso de animais em práticas experimentais. Os atuais ecologistas defensores da proibição do uso de animais como cobaias pelos cientistas oferecem como alternativas para os testes clínicos de novos medicamentos ou tratamentos, a “simulação em computador” ou, como a fisiologia de um animal seria diferente da nossa, o uso de pessoas doentes, que se apresentariam como voluntárias às experiências médicas, cirúrgicas e farmacêuticas: “Há tantas pessoas doentes precisando de ajuda… Muitas delas certamente gostariam de ser cobaias, porque talvez seja sua única possibilidade de cura”, declarou Nina Rosa Jacob, fundadora do Instituto Nina Rosa, que faz campanhas pelos direitos dos animais e pelo vegetarianismo (ESCOBAR, Herton. Defensores das cobaias admitem testes em pessoas. O Estado de S. Paulo, 2 jul. 2006, Caderno Vida&, p. A30).
Georges Franju não chegaria a tanto, e seu filme não deve inspirar os novos ecologistas, embora eles possam aproveitar algumas de suas cenas para fins “educativos”. Mas avesso ao movimento ecológico de fundo fascista, O sangue das bestas pertence a outro universo cultural; há nele um tom trágico que justifica tanto os rudes açougueiros que realizam, sem drama, seu terrível trabalho cotidiano, quanto o sacrifício mudo dos animais, que se deixam abater para que a humanidade carnívora possa saciar sua fome, ou seu gosto pela carne. Ao mesmo tempo, as imagens terríveis do abate cobram da humanidade o preço de sua fome ou de seu gosto pela carne: impossível, depois de ver o filme, comer um bife sem pensar em todo o horror que está por trás dele. Aludindo à violência que se oculta sob a aparência burguesa de nossa vida cotidiana, e à barbárie em que o capitalismo às vezes recai (como no Holocausto recortado pela visão comunista), o filme deixa de ser um simples documentário para tornar-se mais um manifesto extremista na tradição política do surrealismo revolucionário.
Luiz Nazario