sábado, agosto 21, 2010

Surrealismo e Crime

Minotaure, de Man Ray, suposta inspiração do assassino no caso Dália Negra.

Entre 2006 e 2008, o canal de televisão Discovery colocou no ar uma série de documentários que abordavam a perversidade criminosa a partir de uma escala da maldade, de título Most Evil. Dr. Michael Stone, o psiquiatra forense que estabelecera a escala, apresentava o programa, que a cada episódio abordava uma série de assassinos seriais, seus métodos, psicologia e as formas de investigação de cada caso. A escala, muito utilizada por profilers do FBI nos EUA, é caligaresca no mais alto grau: parte da "normalidade"  (quem mata por legítima defesa, por exemplo) até atingir o limite criminoso extremo, que envolveria tortura lenta e assassinato, com bizantinas gradações entre torturadores que optam por infligir suplícios leves, mas que acabam matando a vítima involuntariamente no processo até os que torturam para assassinar depois. Terroristas entram na lista, assim como líderes carismáticos que apreciavam assassinatos em massa, como Jim Jones, mas não soldados que obedeciam ordens (como as guarnições SS alemãs) e extraíam prazer no assassinato e na tortura após alguma ideologia legitimar o desvio da norma. A teoria do Dr. Stone costura a trama de cada episódio do programa, cuja estrutura documental é convencional, soi disant "informativa", mas com frequentes manipulações e distorções, além de forte tendência ao sensacional fait divers.

O quarto episódio da segunda temporada (bem como o décimo da terceira), que foi ao ar nos EUA em 2 de setembro de 2007, tratou, entre outras coisas, do famoso "mistério da Dália Negra", terrível crime jamais resolvido que inspirou ficções especulativas diversas, como o filme The Black Dahlia (A Dália Negra, 2006) de Brian de Palma. Os fatos são bem conhecidos: a 15 de janeiro de 1947, a força policial de Los Angeles encontrou o corpo de Elizabeth Short em um terreno baldio. O corpo estava bem próximo da calçada, era visível da rua, e trazia terríveis mutilações: o rosto desfigurado por um talho de orelha a orelha que deformava a boca em uma espécie de sorriso; o corpo seccionado ao meio, uma parte afastada da outra uns 15 centímetros. A investigação do crime nunca chegou a termo e o assassino nunca foi capturado. Como o episódio tratava exclusivamente de crimes nunca resolvidos, o caso oferecia ao programa uma oportunidade sensacional, ocupando, portanto, o segmento central (e mais extenso) do episódio, centrado em torno das investigações e teorias de um policial de Los Angeles aposentado, Steve Hodel.

Steve Hodel divulgara sua tese em um livro lançado em 2003 (relançado em 2006 em edição ampliada e com mudança no título, que era Black Dahlia Avenger: A Genius for Murder), no livro de título sensacionalista Black Dahlia Avenger: The True Story, grande sucesso de vendas. Pela tese de Hodel, o culpado pelos crimes seria seu próprio pai, Dr. George Hodel, médico especializado em doenças venéreas de fama à época do crime em Hollywood. A tese de Steve Hodel associa fatos da vida do pai ("gênio" de elevado QI na infância e adolescência, jornalista policial improvisado fascinado pela violência do Bas Fond californiano, médico competente com muita experiência em cirurgia) com reduções apriorísticas (o preconceito que associa inteligência a isolamento e potencialmente crime, o moralismo que julga pulsões sexuais diversas como automaticamente criminosas). Mas o centro da especulação do ex-policial se centra em outro ponto: a proximidade do Dr. George Hodel com artistas e intelectuais de Hollywood, especialmente o pintor surrealista Man Ray. Para Steve Hodel, o surrealismo teria influenciado a forma e o conteúdo do crime. Assim, a disposição do corpo (encontrado com os braços para cima) reproduziria a fotografia Minotaure (ca. 1935) de Man Ray. Por outro lado, a ideologia surrealista, na visão de Steve Hodel, teria levado seu pai, mentalmente perturbado, aos umbrais do crime violento, uma vez que o policial aposentado interpretaria o surrealismo como uma visão imoral e anti-humana que atacava vigorosamente os salutares limites da normalidade, estetizando o crime, e o assumindo como obra de arte. No livro de Steve Hodel, Man Ray é pintado como uma caricatura de supervilão, misógino e vingativo, espécie de master mind e homicida por procuração que alegremente inspirava mentes perturbadas a executar aquilo que, covarde, apenas vislumbrava em suas construções artísticas.

No episódio do Discovery, a tese de Steve Hodel é vista como a mais adequada (por essa tese, Dr. George Hodel também seria culpado pelo assassinato de Suzanne Degnan, crime nunca resolvido atribuído ao assim chamado “assassino do batom”), embora inconsistências diversas minem tal especulação. Em primeiro lugar, Steve Hodel afirma que ele teria estabelecido a relação entre seu pai e os crimes, omitindo o fato de que o Dr. George Hodel foi suspeito e investigado rigorosamente no final dos anos 1940, uma vez que sua filha com 14 anos à época, Tamar Hodel, o havia denunciado por ele a molestar sexualmente. O irmão não estava a par disso? Para o Discovery, o ex-policial afirma que as informações sobre seu pai relacionados ao caso “haviam desaparecido”, sugerindo uma conspiração do silêncio a impedir encontrar o criminoso, percepção de mundo paranóide que os produtores da série, nesse momento, não puderam escamotear. Por outro lado, o retrato grosseiro de Man Ray (que inclui equívocos primários, como o desconhecimento do fato de que Man Ray viveu nos EUA de 1940 a 1951 e de que esse pintor não levara suas obras na mala para mostrar em festas de Hollywood, pois Minotaure só seria largamente conhecida e disponível em catálogos nos anos 1950-60), implicado indiretamente no crime, e a falta de fatos concretos e não interpretações e extrapolações, torna a tese risível.

As afirmações de Steve Hodel, contudo, possui algo de fascinante por ter surgido por livre associação da leitura de fotografias. Hodel afirma ter iniciado suas investigações ao encontrar, após a morte do pai, uma foto de uma “mulher nua” entre os pertences íntimos do falecido. O ex-policial não teve dúvidas que se tratava da “Dália Negra” Elizabeth Short, embora mesmo os familiares da vítima considerem tal reconhecimento forçado. Depois, Hodel encontraria a foto de Man Ray, compararia com as fotos do corpo de Elizabeth Short para estabelecer sua “prova” definitiva. Questões edipianas não resolvidas parecem conduzir o policial aposentado, que tenta matar o pai pela destruição da cultura que aquele amava e que distingue pai e filho. Para o moralista perverso, a visão da foto de uma “mulher nua” só pode enunciar crimes horrendos pela liberação de um desejo que alimenta e reprime abertamente. O torso feminino nu da foto de Man Ray apenas aproxima o artista do pai médico, portanto a cultura que ambos representam precisa ser julgada e condenada nas mesmas bases do assassinato propriamente dito. A moral estrita é a arma para esses julgamentos, bem como a psiquiatria que reduz a faixa temível dos desejos a tabelas controláveis por eletrochoques e medicação. O mais espantoso é que a leitura de Hodel de Minotaure comete o equívoco simplório de não resolver o sorriso forçado no rosto da vítima, uma vez que o jogo de sombras apenas oblitera a cabeça, o que sugeriria ao psicótico “inspirado pela obra” a simples decapitação. Aparentemente, os desejos reprimidos de Steve Hodel explodem em suas interpretações e associações, mais que “evidências”, de um antigo assassinato não elucidado.

Teorias como as de Steve Hodel equacionam arte e crime em um mesmo plano, como se a filosofia liberadora do surrealismo – contraditória e problemática, sem dúvida – devesse sofrer condenação judicial e não discussão no campo das ideias, pois “alimentariam” crimes. A melhor refutação a tão maldosa teorização aparece, como sugeriu Luiz Nazario, no monólogo final de James Stewart no filme Rope (Festim diabólico, 1948), de Alfred Hitchcock, que reflete sobre a leitura nazista da filosofia nietzschiana: “Eu posso ter dito algo assim [sobre a superioridade da elite intelectual em relação às massas]”, diz o professor chocado, “mas nunca pensei que minhas idéias pudessem levar a um assassinato... Fui irresponsável, mas dentro de mim nunca houve o desejo de matar... Você distorceu minha filosofia para justificar algo de ruim que já existia dentro de você..."

- O episódio sobre crimes não resolvidos da série Most Evil (em português, Índice da Maldade) pode ser visto (segmentado em quatro partes) no Youtube.

Alcebiades Diniz Miguel

quinta-feira, agosto 05, 2010

Novo filme de Kenneth Anger



O octagenário Kenneth Anger, criador de experiências únicas do cinema underground e autor de Hollywood Babylon, o best-seller de rumores e fofocas do star system, lançou recentemente seu mais recente filme, um curta de dois minutos intitulado Missoni. Trata-se de um filme encomendado pela casa de estilistas Missoni para sua coleção outono/inverno. No curta, Anger captura membros da família Missoni, trajados com suas criações, em camadas múltiplas de cor e textura, que incluem imagens da Lua e do Sol. As imagens lisérgicas de Anger possuem uma curiosa natureza analógica, antiga; como escreveu Mariuccia Casadio, apesar do uso de alta tecnologia, incluindo câmeras digitais RED, o resultado parece feito usando o sistema 35mm clássico, ainda mais levando-se em conta a opção de Anger pelo retrato como núcleo para camadas e mais camadas de imagens sobrepostas. A influência inicial, declarada e perceptível, é o filme A cor da romã, de Serge Paradjanov.

Links:
- O vídeo pode ser visto em alta resolução aqui.

Alcebiades Diniz Miguel