A animação, desde seus distantes primórdios, sempre transmitiu tanto aos seus criadores quanto a seus espectadores uma curiosa sensação de liberdade diante do pesado mundo factual e prosaico, presente em outras formas de audiovisual. Assim, diante da crise de legitimidade de documentos em um mundo digitalizado, no qual informações reais mesclam-se com interpretações pessoais e pura e simples invenção que se pretende verdade verificável, a forma da animação surge como possibilidade de expressão subjetiva, mas historicamente válida, de pequenas e grandes tragédias e demais tétricos eventos históricos. Nada de novo no campo da possibilidade de representação, uma vez que a literatura, por exemplo, já comportava essa possibilidade; a diferença crucial ocorreu em outro campo de possibilidade: o da leitura e interpretação. Assim, subjetivando e restringindo o momento histórico sem ampliar a multidão de vozes que o caracterizam, a Arte, repentinamente, torna-se parceira da barbárie que, em primeiro momento, pretendia denunciar.
Talvez seja essa a grande encruzilhada na qual o filme de animação israelense Waltz With Bashir (2008) de Ari Folman se encontrou desde sua produção inicial. A animação causou frisson mundial, ganhando diversos prêmios em Israel e uma indicação para a Palma de Ouro em Cannes e uma provável indicação ao Oscar de melhor longa de animação, caso em que concorreria com filmes de grandes produtoras e imenso sucesso, como Wall-E (2008), da Pixar. Muitos críticos estabeleceram imediatos vínculos com a animação autobiográfica proveniente do Oriente Médio do ano passado, Persépolis (Persepolis, 2007) de Vincent Parronaud e Marjane Satrapi, apresentando as memórias da autora/protagonista e de sua infância em um Irã nos primórdios da Revolução Fundamentalista Islâmica. A diferença é que a visão extremamente subjetiva de Marjane Satrapi situa-se na esfera da vida cotidiana adestrada pelo totalitarismo integrista. Folman parte de um ponto muito mais complexo: a realidade da guerra e do esforço desesperado do Estado de Israel em sobreviver (diretamente); o resgate doloroso da memória, especialmente as terríveis e traumáticas imagens de atrocidade, que o trauma esconde nos recantos mais profundos da mente, embaralhados (indiretamente). Waltz with Bashir narra, a partir dos diversos pontos de vista de soldados israelenses, os acontecimentos no Líbano em 1982, ano da invasão daquele país por Israel, culminando com o massacre dos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, realizado pela falange cristã maronita. A subjetividade é total, lembrando a técnica de construção de documentário empregada no filme Corações e Mentes (Heart and Minds, 1974), de Peter Davis. Também é constante a parcialidade da abordagem: não sabemos bem quais as motivações de palestinos e libaneses, ou qual o significado da guerra. Talvez, o autor parta da idéia de que a guerra é um fenômeno irracional ou mesmo gratuito, uma arbitrariedade ordenada por autoridades despóticas (sempre israelenses). A ação, militar ou terrorista, de palestinos ou libaneses termina aparentemente como um gesto de defesa; a obra de suposto pacifismo termina por absolver um dos lados do conflito, estabelecendo uma crítica unilateral. A democracia em Israel permite essa liberalidade, mas a verdade histórica não se beneficia de tal abordagem.
Desde já, o tema favoreceria uma grande obra estética que, contudo, não acontece. A questão central do filme termina irresolvida: a memória instrospectiva acaba por ser resgatada, revelando imagens em vídeo e fotografia do massacre de Sabra e Chatila, evento no qual o autor estaria presente. Saltamos da rememoração individual para o registro coletivo, factual, sem qualquer aviso ou nuance. Tal salto é revelador de um projeto estético e também político de equivalência entre instâncias, ao menos em um dos lados, o israelense. A crítica dos erros políticos, dos conflitos desastrosos e das falhas militares do Estado de Israel é atividade necessária, imprescindível, mas culpabilizar todo o país, alinhavando toda e qualquer ação militar a "crime de guerra", direta ou indiretamente, é caluniador e injusto. Papel ao qual Waltz With Bashir, infelizmente, se presta.