Em 2005, a Walt Disney Feature Animation concluiu a produção de uma nova adaptação do conto de Hans Christian Anderson: A pequena vendedora de fósforos (The Little Matchgirl), de Roger Allers e Don Hahn, um curta-metragem de sete minutos, que deveria integrar a coletânea Fantasia 2006. Mas o projeto foi cancelado e A pequena vendedora de fósforos foi finalizado à parte, sem qualquer chance de distribuição mundial nos cinemas, apesar de indicado ao Oscar de melhor curta-metragem de animação em 2007. A única possibilidade de vê-lo é adquirindo a edição de 2006 (a norte-americana Platinum Edition; a brasileira Edição Especial) do DVD do longa-metragem A pequena sereia (The Little Mermaid), também baseado num conto de Anderson, e no qual A pequena vendedora de fósforos é oferecido como bônus.
À diferença da maioria das adaptações para o cinema dos trágicos contos de Anderson, A pequena vendedora de fósforos conserva seu final infeliz. A história passada originalmente num dia de inverno na Dinamarca é transposta para a Rússia czarista, quando uma menina pobre tenta em vão vender seus fósforos. Se no conto a menina tem um pai que a espera em casa e no qual ela pensa com temor, no filme ela parece ser uma órfã, sem teto, sem comida, menor abandonada que acende, à noite, na tentativa de aquecer-se num beco escuro da gelada metrópole russa, os palitos de fósforo que não conseguiu vender. A cada palito riscado, uma imagem de felicidade a envolve, mas para apagar-se assim que o fogo o consome. Ela sonha com jantares suntuosos com pastéis, assados e doces; com sua avó carinhosa a acolhê-la numa dacha com porta de madeira pintada de motivos florais; com uma árvore de Natal prometendo-lhe as maiores alegrias infantis. Mas ao consumir-se seu último fósforo, a pequena vendedora morre de frio, de fome e de solidão.
O diretor Roger Allers, em breve depoimento no DVD, declarou que, quando criança, nunca conseguia chegar ao fim do conto de Anderson sem chorar. A rara sensibilidade deste diretor evidencia-se a cada momento da animação: A pequena vendedora de fósforos é um filme mudo de um expressionismo puro: sem nenhuma palavra proferida, as ações são pontilhadas apenas pelo tocante Quarteto de cordas nº. 2 em ré maior, de Aleksandr Borodin. Tudo é desenhado em tons pastéis de cores frias (pretos, azuis, cinzas e brancos), deixando as cores quentes (verdes, laranjas, vermelhos e marrons) irromperem no visual gelado e sombrio apenas quando uma luz ou um fogo é aceso e, sobretudo, a pequena vendedora risca seus fósforos.
A reconstituição de uma Rússia dostoievskiana é perfeita em cada detalhe, dos edifícios e da neve que os recobre, recordando “Noites brancas”, à cruel indiferença dos adultos que se recusam a comprar da pobre órfã um único fósforo. Em A pequena vendedora de fósforos, a arte da animação atinge um de seus grandes momentos, infelizmente sem a visibilidade que merecia nas salas de cinema.
Observação: É possível encontrar mais informações sobre o processo de criação do curta, além de artes conceituais que revelam a intensa pesquisa de estilo e o apuro visual da obra, no artigo Shedding Light on the Little Mermaid de Ron Barbagallo (em inglês).
Luiz Nazario