terça-feira, agosto 01, 2006

O canto de sereia tecnológico

Desde as primeiras lanternas mágicas ou do “teatro óptico” de Emile Reynauld até modernas obras como Carros (Cars, 2006) da Pixar, inteiramente construído em complexos softwares de computação gráfica, as animações sempre surgem como a vanguarda da visualidade pura, e não é por acaso que, bem antes das plataformas digitais de edição e efeitos tomarem de assalto o cinema, animadores como Ray Harryhausen criassem magníficos efeitos visuais inteiramente baseados em animação. Sem dúvida, a tecnologia mais moderna dessa época foi utilizada nesse caso, mas seu sentido não foi transformado em fetiche do novo, em fim em si que justificasse a existência do filme – que inclui roteiro, direção, design de produção, atuação em live action ou animada etc. – quase como moldura para algum efeito visual particularmente sofisticado e impossível de realizar até um ou dois anos antes. Percebemos, assim, que não são de fato as novas tecnologias as culpadas pela perda do sentido de poesia e imaginação que havia em muitas animações do passado – todas elas realizadas com a tecnologia disponível à sua época –, mas a valorização dos produtos de animação por causa quase que unicamente delas, esquecendo que um bom filme de animação necessita de muitos outros requisitos. Nesse sentido, é curioso perceber que a arte da animação cria um campo inédito, no qual custosas, precárias e “ultrapassadas” técnicas de criação continuam a vigorar e produzir em plena era da computação gráfica, na qual muitos analistas já prognosticam mesmo o desaparecimento do ator e a transformação do cinema em catarse audiovisual derivada dos games.

Nesse sentido, ao ler algumas das recentes resenhas para as animações A casa monstro (Monster House, 2006) e O homem duplo (A Scanner Darkly, 2006), percebemos que, em pleno século XXI, a animação ainda é uma arte considerada meramente um “meio” derivado do cinema, sem autonomia, capaz apenas de produzir diversão simplória e que necessita caprichar em “doces audiovisuais” para despertar no público algum interesse. Os dois longas de animação, lançados recentemente nos EUA, utilizam de fato tecnologias de ponta: o processo de animação por captura de movimentos empregado em Monster House e a rotoscopia dinâmica de A Scanner Darkly. No primeiro momento, o crítico Mick LaSalle escreveu para o jornal San Francisco Chronicle de 21 de julho uma resenha na qual afirma que “a animação nunca conseguiu representar a face humana”, colocando que a técnica da captura de movimento permitia ver “algo novo” que superaria qualquer animação anterior, lamentando que Disney não possuísse tal recurso ao realizar Branca de Neve e Os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937). Objetivamente, a afirmação de LaSalle não estaria equivocada: os modernos processos de mockup e scanning de atores, vistos em obras como a refilmagem de King Kong (idem, 2005) criam um efeito de verossimilhança inigualável. Mas o fato é que todas as infinitas possibilidades que tais recursos colocam nas mãos de designers e animadores são aprovitadas apenas para o aumento da verossimilhança dos filmes: a essência poética, derivada de um aparato tecnologicamente muito mais simples – a arte da narrativa – se perdeu no meio do processo. Logo depois, o crítico James Lipton colocou, no programa Inside Actor’s Studios, que o processo de rotoscopia de A Scanner Darkly, no caso do ator Robert Downey Jr., era “mais efetivo que o desempenho de personagens animados”. Lipton acredita firmemente que o "realismo animado" produz como conseqüência um desempenho, no sentido da atuação dos atores, muito mais convincente que qualquer animação poderia obter. Sem dúvida, o crítico reduz duas possibilidades de expressão específicas – o cinema de live action e a animação – a um denominador único, que possuiria atributos intercambiáveis e poderia ser julgado nos mesmos termos. Para chegar a tais conclusões, o fascínio pela moderna tecnologia que permitiu a Robert Downey Jr. "transformar-se" em animação revela-se como subtexto.

No campo oposto, Jaime J. Weinman, do blog Something Old, Nothing New, afirma que a captura da performance de um ator – que chama de mera "imitação" – jamais alcançaria a expressividade e a capacidade imaginativa daquela obtida por um artista. Utiliza como comparação uma seqüência na qual Rob Scribner anima o personagem Buggs Bunny (Pernalonga), obtendo, de fato, um condensado complexo e estilizado de expressões. Pois de fato – e isso Weinman sublinha – um desenho é, em geral, bem mais sugestivo e expressivo que uma fotografia. O erro de Weinman é acreditar que a expressividade depende da técnica empregada – no caso, o desenho 2D –, e não do talento do animador, esquecendo que podemos animar e dotar de incrível expressão quadros estáticos (como já demonstrou Norman McLaren) e também fotografias. Weinman exila a animação no campo do cartoon, ao focar seu ponto de vista essencialmente no material desenhado, esquecedendo que boas obras de animação tornam expressivos bonecos de madeira, pedaços de papel, chapas de areia, a sombra de objetos, etc. As opiniões expressas em blogs como Cartoon Brew e Something Old, Nothing New repisam velhos preconceitos contra a tecnologia digital em geral – e de captura de movimentos, em particular – que animadores do universo cartoon costumam esboçar, por temer que seu espaço seja diminuído por técnicas de reprodução mimética incrivelmente precisas. O pesquisador João Victor Boechat Gomide, em sua ainda inédita dissertação de mestrado Captura Digital de Movimento no Cinema de Animação (cujo resumo o professor Luiz Nazario gentilmente nos forneceu) analisou esses preconceitos, já abertos desde a utilização da rotoscopia – técnica manual para a captura de movimento, criada pelos irmãos Fleischer – nos anos 1930 até a entrada em cena da computação gráfica e do mocap digital: muitos animadores chamavam as técnicas de captura de movimento digital de "rotoscopia do diabo", como uma anti-arte diabólica que roubaria empregos e tornaria a animação a robótica repetição de patterns captados dos atores. Portanto, desmistificando a posição anti-tecnológica de muitos animadores, as possibilidades expressivas não estariam perpetuamente associadas a uma forma de animar, mas dependem diretamente do talento do animador.

No debate todo, percebe-se que a discussão em torno da tecnologia toma rumos curiosos: de um lado, críticos e jornalistas que costumam avaliar a animação como uma espécie de "expressão menor" do cinema e esperam, justamente, novos rumos para ela, muitas vezes encarando tecnologias de ponta eventualmente empregadas como "salvação"; e os animadores, que pretendem que sua arte seja uma expressão ex nihilo que surge com a mínima intervenção de tecnologias que dominam e muitas vezes escondem, como fez Disney com a rotoscopia na animação de personagens humanos. Uma discussão nesses termos, sem dúvida, está fadada ao beco sem saída das retóricas saudosistas ou progressistas, vazias em essência. A narrativa – essencial para toda e qualquer obra fílmica – é que precisa ser redescoberta, para que o cinema volte a ser o sonho ou o pesadelo acordado único que foi no passado.

Links (em inglês)

- Resenha de Mick LaSalle
- Cartoon Brew
- Something Old, Nothing New

Alcebiades Diniz Miguel