quinta-feira, julho 20, 2006

Digitalizando Toda a Memória do Mundo

Em 1956, Alain Resnais realizou um documentário assustador sobre a Biblioteca Nacional de Paris: Toda a memória do mundo (Toute la mémoire du monde). O cineasta havia acabado de realizar outro documentário, igualmente assustador, sobre os campos de morte nazistas, Noite e brumas (Nuit et brouillard, 1955). Os dois curtas-metragens, de temas tão diversos, tinham algo em comum: eles nos faziam encarar uma realidade vertiginosa e insuportável. Os nazistas pretendiam embelezar e dominar o mundo e criaram um vasto e elaborado sistema industrial de “limpeza étnica”, que se revelou o maior horror, a maior “sujeira” da História. Ampliando o foco, o homem, em sua passagem pela Terra, quer embelezar e dominar o mundo e criou um sistema de organização de seu conhecimento, no qual mergulha como num labirinto borgiano sem saída, perdendo-se para sempre... No filme de Resnais, o prédio da Biblioteca Nacional assumia por momentos o caráter de um KZ da dimensão do campo de Auschwitz: ali estavam concentrados todos os livros publicados em séculos de história humana, ali estava contida, presa, martirizada, sufocada, “toda a memória do mundo”. E os travellings que a câmara do diretor realizava no interior desse monstruoso cérebro nervurado de estantes a perder de vista, transmitiam a vertigem do choque entre o pouco tempo que nos era dado viver e a vida infinita que seria necessária para se possuir toda essa desejada, apesar de tão dolorosa, memória do mundo.

No princípio dos anos 1970, os arautos da revolução digital vieram dar um ingênuo e arrogante “fim” a essa angústia infinita. Em 1971, precisamente, a Declaração de Independência dos Estados Unidos foi “disponibilizada” numa biblioteca de rede eletrônica. Michael Hart fundava o Projeto Gutenberg, a mais antiga fonte de e-books da Internet, de onde são baixados, gratuitamente, 2 milhões de títulos por mês. Seguindo a tendência, a World e-Book Library, que cobra US$ 8,95 por ano para acesso ilimitado ao seu banco de dados, possui 250 mil títulos de autores mortos há mais de 70 anos, cujas obras caíram, assim, em domínio público, ou de autores cujos direitos foram liberados, digitalizados. Juntando suas forças, o Projeto Gutenberg e a World e-Book Library, baseados nos Estados Unidos, mas com escritórios na Europa e Austrália, permitiram o download gratuito de 333 mil títulos durante sua primeira feira on-line, projetando um número de 1 milhão de e-books gratuitos na rede até 2009 e de 10 milhões até 2020. Se o mercado comercial de e-books fracassou em todo o mundo, cada vez mais livros eletrônicos são baixados em computadores portáteis, celulares e iPods da Internet: Para essas pessoas que cresceram jogando em GameBoys, a tela tem um tamanho padrão; para nós, veteranos, pode ser pequena; mas eles não ligam, sustenta Hart, que ainda afirma uma monstruosidade que bem deve ser verdade: Já recebi mensagens de pessoas dizendo que nunca teriam lido Shakespeare se eu não tivesse colocado na internet. [SIMÕES, EDUARDO. Evento coloca mais de 300 mil livros para download gratuito, Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, São Paulo, 4 de julho de 2006].

Também no Brasil, a digitalização da memória do mundo avança a passos gigantescos. Em 1995, através de um protocolo assinado entre autoridades portuguesas e brasileiras no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio Documental (COLUSO), foi criado o Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, com o objetivo de disponibilizar documentos históricos relativos à História do Brasil existentes em arquivos de Portugal e demais países europeus. A iniciativa fundamentou-se na resolução nº. 4212, de 1974, da UNESCO, que convidou seus Estados a transferir as informações contidas nos documentos provenientes de arquivos constituídos no território de outros países ou se referindo à sua História. Coordenado desde 1996 pelo Ministério da Cultura, o Projeto Resgate envolve mais de 110 instituições públicas e privadas, brasileiras e portuguesas e mais de 100 pesquisadores, numa iniciativa sem paralelo na preservação em meio digital dos suportes documentais da memória nacional: 340 mil documentos (ou 3 milhões de páginas manuscritas) relativos a 18 capitanias da América portuguesa depositados no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), o maior acervo de documentação colonial brasileira no exterior, foram descritos, classificados, microfilmados e digitalizados. Os arquivos estaduais receberam cópia microfilmada da documentação do passado colonial de seus estados e a Biblioteca Nacional preserva toda a coleção em microfilmes.

Associado ao projeto, existe instalado na Universidade de Brasília (UnB), desde 2003, um Centro de Memória Digital (CMD), integrado por professores e alunos de graduação e pós-graduação dos cursos de História, Letras, Engenharia de Redes, Comunicação e Ciências da Informação, com o objetivo de preservar e divulgar o patrimônio histórico documental em meio digital. Em razão da dimensão monumental, o Projeto Resgate em Conteúdo Digital pretende agregar outras instituições mantenedoras de acervos documentais interessadas em sua difusão.

O Portal Domínio Público, lançado em novembro de 2004, colocou à disposição dos usuários da Internet uma biblioteca virtual com acervo inicial de 500 títulos (hoje contém já 732 obras de literatura só em língua portuguesa). O portal permite coletar, preservar e compartilhar conhecimentos, sendo seu objetivo promover o amplo acesso às obras literárias, artísticas e científicas (textos, sons, imagens e vídeos) que caíram em domínio público ou tiveram sua divulgação autorizada. Ao disponibilizar informações e conhecimentos de forma livre e gratuita o portal também pretende, espertamente, estimular a discussão sobre as legislações relacionadas aos direitos autorais...

Finalmente, a Coleção Capes de Humanidades, constituída de 150 mil livros publicados no século XVIII (ou 33 milhões de páginas contendo obras de literatura, artes, história, geografia, ciências sociais, religião, filosofia e medicina) foi disponibilizada para a comunidade acadêmica. Obras completas de filósofos como Emmanuel Kant ou de cientistas políticos como Adam Smith, integrantes da Biblioteca Nacional Britânica, foram digitalizadas. Os livros são apresentados em inglês, francês, alemão e até latim. A presidente da Comissão Brasileira de Bibliotecas Universitárias (CBBU), Sigrid Weiss Dutra, observou que seria inviável reunir um acervo como esse de forma física.

Toda essa memória digitalizada, todo esse conhecimento “democratizado” e “disponibilizado”, todo esse oceano de informações úteis e inúteis misturadas e revolvidas, todo esse sórdido comunismo do saber parece estar esgotando a todos. Não se consegue mais simplesmente ler um livro, pois há demasiadas páginas on line para ocupar os olhos, queimados lentamente; não se consegue mais relaxar, estar em paz, gozar o prazer de levar para o quarto um bom romance, que faça o homem assolado pelas realidades justamente esquecer esse mundo. Diante de tantos textos digitalizados oferecidos ao leitor, transformado em “usuário”, aqueles que – como os heróis da maravilhosa visão futurista de Farenheit 451 (1966), de François Truffaut, inspirada na novela de Ray Bradbury, lançado em DVD pela Universal Home Vídeo –, quiserem manter sua humanidade, terão que saber, sim, manipular esses instrumentos diabólicos, fazendo suas pesquisas on line quando necessário; mas buscando, sempre que possível, salvar das chamas digitais um único e bom livro de papel, para nele se refugiar do admirável mundo novo que se descortina, voltando com prazer suas costas para a tela luminosa, irritante, barulhenta, horrorosa, torturante, do computador.

Fontes

Projeto Resgate
Centro de Memória Digital
CAPES
Portal Domínio Público
World E-Book Fair
Project Gutenberg

Filme em DVD indicado: Farenheit 451

Luiz Nazario

domingo, julho 16, 2006

Sony decreta fim de discos UMD

Os formatos proprietários, muito específicos ou focados em nichos de pouca difusão, parecem estar com os dias contados. A Sony anunciou recentemente que seu UMD (acrônimo de Universal Media Discs), direcionado para reprodução nos consoles portatéis da Sony PSP, foi cancelado. O motivo: as baixas vendas de filmes nessa mídia, que levaram estúdios como a Universal e a Paramount a cancelar o lançamento de títulos no formato. O golpe sobre a Sony foi duro: enquanto o formato de distribuição digital da Apple, através da Internet, é aplaudido por emissoras de TV, estúdios e usuários, os métodos proprietários da Sony não conseguem a mesma unanimidade. Mas a empresa japonesa não desistiu: o cancelamento do UMD abriu espaço para o lançamento de outro formato, o Memory Stick Entertainment Packs (MSEP). O MSEP nada mais é que os cartões de armazenamento da Sony (os Memory Sticks) usados para distribuir filmes de um catálogo limitado e nada interessante (os primeiros lançamentos são Hitch, S.W.A.T., The Grudge e XXX: State of the Union), em resolução menor que a dos UMDs e com preços abusivos. A lição dos UMDs ainda não foi absorvida...

Via Real Tech News (em inglês).

Alcebiades Diniz Miguel

Fórum sobre Preservação e Restauração - 2005

O I° Estágio Ibermedia de Restauração Digital, que reuniu profissionais ligados a diferentes instituições de cinco países latino-americanos (México, Chile, Brasil, Bolívia e Argentina), encerrou-se, em outubro de 2005, com o Fórum de Debates sobre Preservação e Restauração de filmes no Brasil e na América Latina, ocorrido na Cinemateca Brasileira. Associado ao Projeto de Restauração dos Filmes de Joaquim Pedro de Andrade (que enfrentou diversas dificuldades ao recuperar a obra completa deste cineasta utilizando tecnologia digital de alta definição), o Estágio promoveu o encontro de pesquisadores, cineastas, técnicos e representantes de acervos fílmicos para discutir temas estruturais para a preservação e restauração do audiovisual no Brasil: a utilização das tecnologias digitais e fotoquímicas e seus aspectos éticos e estéticos; a colaboração entre herdeiros, detentores de direitos de acervos fílmicos e arquivos brasileiros; e as formas de colaboração desenvolvidas em diferentes projetos - métodos de trabalho, dificuldades e perspectivas, questões jurídicas e institucionais correlatas; a necessária cooperação nacional e internacional entre arquivos fílmicos; a difusão dos filmes restaurados, sua distribuição comercial e não-comercial em salas de cinema, televisão, vídeo e DVD, cujas edições críticas favorecem uma melhor compreensão da história do cinema.

Participaram do Fórum: Alex Andrade (Núcleo de Programação da Cinemateca Brasileira); Alexandre Pimenta (CRAV - MG); Alice de Andrade, Antonio de Andrade e Maria de Andrade (Projeto Joaquim Pedro de Andrade); Alice Gonzaga (Cinédia); Angel Martinez (Filmoteca da UNAM); Augusto Sevá (cineasta, ex-diretor da Ancine); Carlos Roberto de Souza (Departamento de Acervo da Cinemateca Brasileira); Chico Moreira (Labocine); Clóvis Molinari (Arquivo Nacional); Djin Sganzerla (Projeto Rogério Sganzerla); Eduardo Lopez (Cinemateca Boliviana); Eugênio Puppo (Projeto Primo Carbonari); Fábio Fraccarolli (Restaurador - Estúdios Mega); Fernanda Coelho (Departamento de Preservação da Cinemateca Brasileira); Helena Ignez (Projeto Rogério Sganzerla); Hernani Heffner (Cinemateca do MAM); Ismail Xavier (pesquisador); Jefferson Pugsley (Paramount); Joel Pizzini (pesquisador); Johan Prijs (consultor técnico de restauração); José Luiz Sasso (JLS Facilidades Sonoras); Luciana Corrêa de Araújo (pesquisadora); Luiz Adelmo (editor de som); Marcelo Siqueira (Diretor técnico - Teleimage); Mário Carneiro (fotógrafo); Myrna Brandão e Carlos Brandão (CPDOC); Paloma Rocha (Projeto Glauber Rocha); Patrícia de Filippi (Laboratório de Restauração da Cinemateca Brasileira); Sérgio Martinelli (Projeto Vera Cruz); Sérgio Serapião (Projeto Cine-Educação); Tarcísio Vidigal (Grupo Novo de Cinema e TV); Vladimir Carvalho (cineasta). Foram apresentados alguns dos filmes recentemente restaurados por processos digitais e e/ou fotoquímicos, bem como documentários relacionados a cada processo.