Existem filmes que, ao sabor das censuras formais e/ou de conteúdo, do mercado ou de complexos litígios entre produtores, diretores, distribuidoras e, mesmo, atores, acabam sofrendo mudanças, cortes, transformações e outros tipos de mutilação. Esse foi o caso de Ouro e maldição (Greed) de Eric Von Stroheim, como foi também de O idiota, de Akira Kurosawa, ou Metropolis, de Fritz Lang. Mas mesmo esses filmes mutilados tiveram uma estréia com espectadores e registro físico de seu formato original, necessário para que os restauradores chegassem a algum lugar. A distribuidora nova-iorquina Criterion encarou um desafio mais complexo: finalizar um filme que o próprio diretor nunca terminou, e cujas versões mais ou menos incompletas, espalhadas pela Europa e EUA, possuem tantas diferenças em relação às opções de montagem que praticamente constituem três filmes diferentes.
Mr. Arkadin (1955), como aconteceu muitas vezes na carreira de Orson Welles, sofreu tremendas alterações: o produtor do filme, o francês Louis Dolivet, expulsou Welles da sala de edição. Os designers de produção e pesquisadores da Criterion trabalharam com cinco versões diferentes do filme (duas espanholas, duas americanas, e a que foi lançada na Europa); tentaram, em primeiro lugar, chegar a um todo coerente e garantir qualidade de cópias em formatos diversos (inclusive em 16 mm, a chamada versão Corinth, encontrada nos anos 1960 por Peter Bogdanovitch), tendo como drama adicional o problema de trabalhar com formatos múltiplos em países diversos que, por motivos vários, não enviaram seus originais à Nova Iorque. A equipe da Criterion, então, viajou para a Europa e conseguiu digitalizar os materiais para a etapa seguinte, edição e correção de problemas gerais via software. Para resolver o problema final – qual das edições seguidas seria a mais próxima da concepção de Welles, se isso é possível determinar –, optou-se por uma concepção interessante: oferecer ao espectador o maior número possível de versões do filme, utilizando um processo semelhante ao que filólogos empregam para reconstituir obras literárias que foram se fragmentando com o passar dos séculos. Assim, o box da Criterion trará – além de extenso e valioso material crítico, como é de praxe nos lançamentos da distribuidora nova-iorquina – praticamente três filmes: a versão Corinth, a versão lançada na Europa (batizada Confidential Report) e a nova versão hipotética, próxima da suposta concepção de Welles.
O trabalho de arqueologia da Criterion, pioneiro entre as distribuidoras de DVDs, é um modelo que vai pouco a pouco se impondo no mercado de vídeo: as próprias distribuidoras entram no universo da restauração, antes exclusivo do circuito das cinematecas. E a iniciativa, graças à versátil e acessível mídia do DVD, que liberta o cinéfilo das programações esporádicas dos quase invisíveis “tesouros da cinemateca”, traz ainda a possibilidade de uma reconstituição quase filológica dos filmes mutilados pelo mercado cinematográfico.
Maiores informações:
http://www.criterionco.com/asp/release.asp?id=322
http://www.studiodaily.com/filmandvideo/currentissue/6014.html
Alcebiades Diniz Miguel
terça-feira, abril 04, 2006
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